Quando só a arte é capaz de nos lembrar que ainda somos gente

A arte é um portal que nos tira da paralisia e nos conduz para este lugar em que a dor, a beleza, o absurdo ainda não se esvaziaram

Legenda: É a literatura, através de tortos arados e afins, que vai nos empurrando para um lugar em que o corpo ou a mente, finalmente, respondem, sacodem
Foto: Maria_Petrishina/ Shutterstock

Acordo de manhã, mal desce o primeiro gole de café, dou aquela checadinha obrigatória nas redes sociais. Bombardeio. Pulo, logo em seguida, para os portais de notícias. Conecto os aplicativos de jornais, leio o que me interessa, passo direto por muita coisa, salvo uma matéria para ler depois. Do que vi, do que li, processo pouco ou nada. Pra mim, esses movimentos são quase automáticos, faço sem pensar. Mas faço por gosto - acho -, me causa algum prazer essa ilusão de “estar atualizada”. Nessa ciranda de redes e portais que me sacia antes mesmo da torrada com manteiga, tem, obviamente, muita coisa que é inadmissível ignorar.

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Num único dia, por exemplo, a realidade me joga na cara que um pai, fugindo da guerra, amarrou seu bebê numas garrafas pet e saltou no mar abraçado àquele corpinho pequeno, em busca de salvação em outro país. Ou um ministro que segue fazendo fortuna enquanto milhões não têm o que comer.

Ou um jogador de futebol que participou de um crime brutal contra uma mulher, cujo corpo até hoje não apareceu e não há suspeitas de que vá aparecer - é homenageado por torcedores do seu ex-clube. Ou, ainda, no grupo da família, as novidades podem envolver a morte de um conhecido, um roubo à mão armada na rua da frente, tão banais quanto um “bom dia”.

O horror vai passando assim, cronometrado pelo curto tempo do arrastar de um dedo na tela iluminada. Quando alguma coisa me pega de jeito, me fere, me paralisa, comento com alguém, mando pelo WhatsApp, numa tentativa desesperada de identificar “não estou louca de sofrer com isso aqui, né?” e recebo de volta um “putz”, “pesado”, seguido de um “e então, deu certo aquele negócio?” ou “como foi o jantar ontem?”. Pronto, nem quando eu busco, o sentimento se sustenta. A realidade me congelou e esse frio parece ser contagioso.

Até que a arte entra, artilheiríssima no jogo de nos mostrar que ainda somos essa criatura que sofre, chora, pensa, se emociona, se deslumbra, se indigna, e que percebe que está tudo muito errado.

Exemplifico. Mulheres estupradas durante festas e noitadas são um lugar-comum, e de tão comum, raramente choramos junto. Michaela Coel sabe tanto disso que resolveu criar uma série - brilhante, vale dizer - para fazer com que pessoas do mundo inteiro prestassem atenção no seu relato saído da vida real e, finalmente, sentissem alguma coisa com ele. Foi daí que nasceu “I May Destroy You”.

Mais um: crianças abandonadas em contextos de guerra ou de absoluta miséria, aqui mesmo na favela ao lado, raramente nos rende mais do que um “tadinho” quando expostas em vídeos do Twitter. Ao mesmo tempo que, acredito eu, é impossível sair emocionalmente ileso de “Capharnaum”, filme da libanesa Nadine Labaki, um dos melhores da atualidade.

A arte é um portal que nos tira da paralisia e nos conduz para este lugar em que a agonia, a beleza e o absurdo ainda não se esvaziaram, ainda são reais, ainda são alguma coisa. É a pintura que nos faz chorar diante do deslumbre da dor da mulher Frida Kahlo. É a literatura, através de tortos arados e afins, que vai nos empurrando - mesmo sabendo que no Brasil são milhões os que vivem sem chão e sem direitos - para um lugar em que o corpo ou a mente, finalmente, respondem, sacodem. É a música, com suas bethânias ou ninas, que nos suspende num canto de celebração do amor ou de indignação com injustiças. E é o poder de um artista popular que, enfim, une um país num lamento, como acontece hoje com a partida prematura da cantora Marília Mendonça. Porque sentimos.

Enquanto isso, na pressa das redes, na miséria e no caos evidente que nos cerca, a frequência da realidade se acumula numa pilha interminável diante dos nossos olhos e a gente boceja. A arte, dentre tanto, nos dá tempo. Tempo de encontro, tempo de reencontro, tempo de respiro, tempo de busca, profundidade. Nos envolve, nos conduz, nos chama pelo nome. Nos lembra que somos - ainda e não sei se por muito tempo - tu e eu e nós, gente.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.