Aprendi, ao longo de anos, a gostar de cozinhar. Durante a adolescência e começo da juventude, se juntava à total inaptidão, um desgosto quase material pela tarefa.
Achava chata, perda de tempo, subtarefa, até, vejam que burrice. Entretanto, desde que saí da casa da minha mãe, aos 20 anos, sem a mamata de ter quem cozinhasse e sem dinheiro para fazer as refeições fora, tive que ir me virando, com raiva mesmo. Não é que eu não soubesse, este desgosto eu não carregava.
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Aos 20 anos e sendo adulta, eu não passava, graças a Deus, a vergonha de ostentar aquela ignorância de “não sei cozinhar nem um ovo”, como se não saber o básico fosse legal, quando é só triste e evidencia uma sociedade - na qual me incluo - que se acostumou a ser servida sempre. Isso não. Eu sabia cozinhar o trivial. Não ficava bom, mas eu sabia fazer.
Quando me mudei para Lisboa, a chave virou. Com o salário baixo como o daquele país é, receber amigos em casa se tornou a principal atividade social e fui tomando gosto. Me aventurando com um risottinho aqui, uma massa ali, uns camarões se eu quisesse caprichar.
Foi ficando bonito. Prazeroso. Apesar da minha cozinha minúscula e pouco equipada, preparei, feliz, muitas refeições para comer sozinha, com meu companheiro ou com grupos de gentes que se juntavam uns nas cadeiras descombinadas da sala ou nos bancos desconfortáveis da varandinha. Era o que tinha.
Daí o troço evoluiu. Cozinhar como atividade terapêutica foi outro salto, o melhor até agora. Hoje, não apenas sinto prazer em preparar as refeições como me sinto mentalmente melhor durante o processo. A pandemia elevou essa sensação a níveis estratosféricos e, como tantos milhões de pessoas, bater um bolo virou uma enorme válvula de escape ao desespero.
Cozinhar acalmava, me trazia a sensação de estar realizando algo mergulhada naquele tsunâmi de limitações impostas.
Disso para a associação entre escrever e cozinhar foi um pulo. Durante um dos exercícios de escrita que fiz recentemente, me dei conta de que cozinhar e escrever são, para mim, ao mesmo tempo, prazerosos e exaustivos pelos mesmos motivos: porque existe preparo prévio, esforço, paciência, tempo, algum carinho para que o resultado não seja desgostoso, atenção aos detalhes, vontade de oferecer algo a alguém e, principalmente, sobretudo, presença.
Para cozinhar e para escrever é preciso estar ali, com as mãos e com a cabeça. Ou o caldo desanda. Em ambos os atos há um generoso espaço para o improviso, para a experimentação, para os riscos e as descobertas, mas conhecer algumas medidas ajudam a não passar do ponto.
Não gosto de cozinhar todo dia, apesar de ter que. Não gosto de escrever todo dia, apesar de ter que. Num ou no outro, nem sempre o resultado é o esperado, o que às vezes também vai do gosto de quem senta à mesa. A boa notícia é que continuar fazendo, a constância, na cozinha ou no Word, aprimora o fazer, o prazer e o sabor.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora