“Não me peça para dar de graça a única coisa que tenho para vender”

Naturalizamos a pirataria de livros a tal ponto que, quando um autor reclama disso, vira alvo de agressões, desaforos e ofensas

Legenda: Passamos anos mergulhados em pesquisas e precisamos ser devidamente remunerados pelos frutos de nosso esforço
Foto: Sub_marina/ Shutterstock

Por que será tão difícil, para tanta gente, entender o ofício da escrita como um trabalho qualquer? Ora, é com os direitos autorais da venda de nossos livros que eu e minha companheira pagamos o aluguel, a comida que pomos à mesa todos os dias, a roupa que vestimos.

Veja também

É com esse mesmo dinheiro que honramos os boletos no final do mês, as contas de água, luz, gás, internet e telefone. Sobrevivemos essencialmente disso — e de atividades correlatas, como proferir palestras, ministrar aulas em cursos livres, redigir textos para a imprensa.

Não escrevemos por diletantismo, muito menos por abnegação, filantropia ou sacerdócio. Escrevemos porque esta é a única tarefa que sabemos desempenhar com alguma relativa habilidade. Dela tiramos nosso sustento. Passamos anos mergulhados em pesquisas e precisamos ser devidamente remunerados pelos frutos de nosso esforço. Do contrário, teríamos que, no limite, mudar de ramo e parar de escrever livros.

Qualquer desvio ou perturbação em nossa fonte de renda resultará em dificuldades à manutenção da casa. Cada vez que um livro nosso é pirateado, cada vez que um pdf de “Maria Bonita” ou “Arrancados da terra” é compartilhado na internet, alguns preciosos reais pingam a menos em nosso orçamento doméstico.

Nos últimos dias, o amigo Fernando Morais denunciou a pirataria em torno de seu livro mais recente, a biografia do ex-presidente Lula. “Estão me roubando”, protestou, com toda razão. Tanto bastou para que chovessem impropérios contra ele nas redes sociais. Foi chamado, inclusive, de “socialista de butique” e “elitista burguês”.

Fico imaginando se os autores desse tipo de crítica renunciariam, de modo magnânimo, a parte do salário que recebem por seus respectivos trabalhos. Ou o que diriam ao flagrar alguém metendo a mão em parcela do seu contracheque — ou mesmo fazendo um “pix” fraudulento a partir de suas contas bancárias.

Pois é disso que se trata. Fraude. Roubo. Apropriação indébita. Naturalizamos a pirataria de livros a tal ponto que, quando um autor reclama disso, vira alvo de agressões, desaforos e ofensas. A normalização desse tipo de crime grassa nos meios acadêmicos. Professores, sem se dar conta do efeito perverso da prática, oferecem fotocópias e pdf de livros como textos básicos para as disciplinas, em vez de incentivarem o uso de bibliotecas universitárias e públicas.

Não é apenas o autor que sai prejudicado com a pirataria. Mas, sim, todo um setor da chamada economia criativa, o que envolve profissionais das mais variadas áreas e especialidades: desde revisores, diagramadores, capistas, ilustradores, tradutores e editores a livreiros, vendedores e balconistas.

Sem falar nas centenas de outros trabalhadores de escritório, impressão e logística, envolvidos no longo processo de produção de um livro, desde a mesa do autor até chegar às mãos do leitor.

Depois reclama-se do fechamento de livrarias e de escritores viverem à míngua. Há alguns anos, o mercado fonográfico precisou se reinventar, diante da prática da pirataria. Os artistas da música ainda conseguiram a alternativa de viver dos shows, e não depender mais da venda de discos, compensando a perda. Vieram as plataformas de streaming e alterou-se, de uma vez por todas, o sistema de produção e veiculação de música.

No caso do mercado editorial, há de se encontrar também uma saída. Com a ressalva de que a maioria de nós, escritores, jamais conseguiremos reunir plateias gigantescas dispostas a comprar ingresso para nos ouvir cantar, digo, falar. Os eventos literários — bienais, festivais e feiras do livro — pagam cachês (quando pagam) definidos pelos próprios organizadores como “simbólicos”.

Enquanto isso, a naturalização da pirataria é tamanha que, dias atrás, uma amiga de minha companheira perguntou se ela poderia compartilhar o pdf de seu livro mais recente. “Estou ansiosa para ler”, justificou. Quando Adriana sugeriu que ela comprasse um exemplar na livraria, a tal amiga deve ter se dado conta da extravagância do pedido.

Pelo mesmo motivo, é comum receber solicitações para escrever textos para jornais, revistas e antologias. Quando pergunto quanto eles pretendem pagar pelo trabalho, muitos se ofendem. Alguns, mais descarados, chegam a argumentar que, em troca, oferecem-me o prestígio de ter um texto publicado em suas páginas. Outros apelam para a caridade, sugerem que as colaborações de graça ajudarão a manter a publicação.

A uns e outros, ocorre-me perguntar: eles pediriam um serviço gratuito a um eletricista, a um advogado, a um encanador, a um dentista, a um pedreiro, a um contador, enfim, a qualquer profissional que seja, em troca da vaidade de servir-lhes ou do altruísmo em ajudá-los? Evidente que não.

Portanto, ouçamos o que dizia a atriz Cacilda Becker: “Não me peça para dar de graça a única coisa que tenho para vender”.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.