Pequena e cruel historinha para assustar e divertir meninos

Foto: Miray Bostancı/Pexels

Das inúmeras historietas que minha mãe contava, algumas me ficaram na memória desde a infância. Mamãe tinha formidável habilidade não só para escrever, mas também para narrar “causos” em voz alta. Contava-me as mesmas histórias dezenas de vezes — e eu nunca cansava de ouvi-las de novo, repetidamente, ao ponto de eu próprio sabê-las decoradas, na ponta da língua.

Minha mãe, por sua vez, dizia que lera a maioria daquelas historinhas ainda menina, muitas delas nas páginas do “Almanaque do Tico-Tico”, umas das primeiras publicações brasileiras destinadas às crianças, que celebrizou, entre outros, o trio de personagens Reco-Reco, Bolão e Azeitona, criações imortais do caricaturista cearense Luiz Sá.

Mas uma de minhas histórias favoritas tinha como título “O pequeno esquecido”. Era sobre certo garoto, chamado João, cuja mãe solicitara que ele fosse até o açougue, pois decidira preparar uma galinha à cabidela para o almoço. Como se sabe, também conhecida por frango ao molho pardo, tal receita leva sangue como um dos ingredientes básicos.

Tentarei recontar a historinha aqui de orelhada, assumindo o risco de alterar ou suprimir algum detalhe, dada a quantidade de tempo decorrido desde que a ouvi pela última vez dos lábios de minha mãe. Mas, desde já, advirto: contém doses consideráveis de atroz ironia.

Pelo que consigo lembrar, o tal João adorava o prato sanguinolento — ao contrário de mim, que sempre o detestei. Por isso, lá foi ele repetindo pelo caminho, consigo mesmo, de casa até o açougue: “Tomara que haja sangue... Tomara que haja sangue... Tomara que haja sangue...”

Contudo, a certa altura, o menino deparou com dois marmanjos que discutiam no meio da rua, por alguma razão qualquer, na iminência de trocarem socos, tabefes e pontapés. “Tomara que haja sangue... Tomara que haja sangue... Tomara que haja sangue...”, prosseguia o distraído João, em sua cantilena.

Um sujeito que estava por perto repreendeu-o, de imediato. “Não digas isso, garoto, não queiras o pior para ninguém. Fales assim: “Tomara que desapartem!”. João, desatento que era, esqueceu do propósito inicial e, a partir daí, saiu repetindo: “Tomara que desapartem... Tomara que despartem... Tomara que desapartem...”

Mais adiante, ainda no caminho do açougue, havia uma igreja, de onde naquele mesmo instante saía um casamento. Ao passar próximo ao casal de noivos, o distraído João continuou repetindo: “Tomara que desapartem... Tomara que despartem... Tomara que desapartem...”.

Um dos convidados da cerimônia, ao ouvir tamanho descalabro, advertiu o menino para que não jogasse praga aos jovens e felizes recém-casados. Ao contrário, ele deveria pedir aos céus para que novos casamentos como aquele ocorressem na mesma igreja. “Digas assim: tomara que logo saia outro!”.

Lá se foi o desligado João, portanto, seguindo seu caminho, entoando a nova ladainha: “Tomara que logo saia outro... Tomara que logo saia outro... Tomara que logo saia outro...”. Sem que se desse conta, na esquina seguinte havia uma funerária, de onde um caixão estava sendo posto dentro do carro para ser levado ao cemitério.

“Tomara que logo saia outro... Tomara que logo saia outro... Tomara que logo saia outro...”, continuava João, para perturbação de um familiar do morto. “Moleque safado!”, gritou o homem vestido de preto. “Em vez de zombar da desgraça alheia com essa litania de mau agouro, deverias dizer assim: Tomara que não saia mais nenhum!”

“Tomara que não saia mais nenhum... Tomara que não saia mais nenhum... Tomara que não saia mais nenhum...”, começou a recitar o avoado João. Seguiu na mesma toada até passar pelas margens de um rio, onde um indivíduo, após escapar da desgraça de morrer afogado, tentava resgatar um amigo das águas traiçoeiras.

“Tomara que não saia mais nenhum... Tomara que não saia mais nenhum... Tomara que não saia mais nenhum...”, insistia João. “Não seja assim tão cruel”, recriminou uma senhora que assistia à cena. “Não tens medo de ser castigado pelo destino? Tomara que tropeces numa pedra, esborraches a cara no chão e quebres o nariz. E tomara que haja sangue!”, ela esbravejou.

“Tomara que haja sangue!”, lembrou, enfim, o garoto, que partiu todo serelepe, a caminho do açougue, já sonhando com a galinha a cabidela. Como podem ver, o bom dos “causos” contadas por minha mãe é que eles não tinham nenhuma lição a dar, nenhum pedagogismo bem-intencionado embutido, nenhuma moral da história a pregar.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.