O biógrafo é um “biófago”, devorador de vidas. Alimenta-se da existência alheia: trajetos, percursos, histórias. Vive da tentativa de compreender o outro, decifrá-lo, traduzi-lo, captar-lhe sentidos e significados.
A biografia é, também, ato de possessão. Experiência de perder-se nos emaranhados da trajetória de um indivíduo, no intuito de reconstruí-la, esquadrinhá-la, indagá-la a respeitos de suas intenções e acasos. Sondar-lhe os propósitos, escarafunchar-lhe os mistérios, explorar-lhe os solavancos, reviravoltas e vaivéns do caminho.
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A ideia da escrita biográfica como ato de devoração antropofágica é de Claude Arnaud, biógrafo de Jean Cocteau: “Devoro a língua e o tutano, o coração e os miolos [do biografado]. Depois desse festim, sei mais sobre ele do que sobre aqueles e aquelas com quem convivi”.
Por sua vez, foi Roger Dadoun, biógrafo de Freud, quem propôs a imagem do escritor de biografias como alguém que tenta se apossar do biografado, mas, em meio à complexidade da empreitada, acaba por ser possuído por ele – tornando-se seu hospedeiro. “Como tudo que vai e volta, a possessão se exerce igualmente em sentido contrário, numa relação de reciprocidade”.
As metáforas de Cocteau e Dadoun, a respeito da biografia como festim antropofágico e ritual de possessão, são evocadas em “O desafio biográfico: escrever uma vida”, livro do historiador francês François Dosse, lançado no Brasil pela Edusp. Trabalho belo e denso, que acompanha a evolução do gênero desde a origem, na Antiguidade, analisando-lhe as evoluções, mudanças e impasses metodológicos.
Dosse não foge à célebre crítica de seu compatriota Pierre Bourdieu, a respeito da suposta ineficácia e das presumidas impossibilidades decorrentes da chamada “ilusão biográfica”. Ao contrário, acrescenta novas doses de condenação à ideia ingênua de que a trajetória de um indivíduo possa ser reconstituída de maneira linear, coerente, determinista, teleológica – mero joguinho de quebra-cabeças no qual a tarefa do biógrafo seria encontrar o encaixe perfeito das peças certas.
“O fato de considerar o ser humano como fundamentalmente plural, mantenedor de vínculos diversos, modifica a abordagem do gênero biográfico”, propõe-nos Dosse, biógrafo de Paul Ricouer. A propósito, a escrita da história, segundo Ricouer, é uma espécie de “ilusão controlada”, tentativa de iluminar o passado – sem a vã pretensão de reconstruí-lo, tal qual ele foi – mediada pelos controles, limites e potencialidades dos documentos e fontes.
Escrever sobre o passado será sempre buscar vestígios e indícios, que por vezes não passam de cacos, fragmentos, estilhaços esquivos. Dosse sugere então novas possibilidades para o entendimento do fazer historiográfico – e, por consequência, da escrita biográfica, descartando, ressalte-se, a hipotética dicotomia entre os dois ofícios.
Biografar alguém, por essa perspectiva, significaria contemplar e analisar as múltiplas imagens – antagônicas, opostas, divergentes – em torno do biografado, para assim tentar compreender como foram e como são estabelecidas as representações e mitologias a respeito dos personagens históricos.
Nos últimos meses, tenho pensado bastante em tais questões, ao me debruçar sobre dois projetos em curso. O primeiro, um livro sobre como escrever biografias, cujos originais já se encontram nas mãos de meus editores. O outro, uma biografia propriamente dita, que tem me conduzido de volta ao excitante exercício da devoração e da possessão biográfica.
Estou em pleno processo de devorar e ser devorado, possuir e ser possuído por um novo biografado. É fascinante – e, confesso, mais uma vez, profundamente aterrador.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.