A doutoranda, atônita, bateu à porta do gabinete do professor. Entregara um capítulo da tese para que ele lesse e fizesse os comentários críticos. Recebera de volta o calhamaço coberto de anotações em vermelho, da primeira à última página. Na maioria, sugestões de cortes.
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A moça quis saber quais critérios o professor usara para tantas interferências. “É um ótimo trabalho, tem muitos dados, uma análise original, boa organização”, ele reconheceu. “Mas muito verborrágico; eliminei todas as redundâncias e floreios acadêmicos”.
Inconformada, a aluna pediu esclarecimentos. O professor apontou então a primeira frase do texto original: “Este capítulo examinará o impacto do dinheiro ou, mais especificamente, dos rendimentos independentes nas relações entre marido e esposa, com especial atenção ao âmbito dos assuntos financeiros”. Estava prolixo, opaco, confuso.
Ao lado, em tinta vermelha, sugeria-se uma nova redação, mais simples, curta, direta: “Esse capítulo mostrará que os rendimentos independentes mudam a maneira como marido e esposa lidam com assuntos financeiros”. Mais nitidez, com menos palavras.
A aluna não pareceu convencida. O professor indicou outra frase, pinçada a esmo: “Os indivíduos objeto desse estudo podem se dar ao luxo de não se preocupar a respeito de...”. Antes de seguir adiante, perguntou se ela não podia simplesmente dizer que os ditos indivíduos “não precisam se preocupar com...”. O “se dar ao luxo” e o “a respeito de” estavam sobrando.
A aluna encafifou-se. Admitia que todas as sugestões deixavam o texto mais conciso e claro. “Mas...”, ela redarguiu, hesitando por alguns segundos, sem conseguir terminar a frase.
“Mas o quê?”, perguntou o professor. “Bom, o outro jeito tinha mais classe”, respondeu a aluna, após novos instantes de embaraço. Foi orientada a ir para casa, pensar sobre o assunto e, ao final, escrever cinco páginas explicando o que queria dizer com um texto de “mais classe”.
A moça desapareceu por dois meses, ao final dos quais enviou, enfim, uma carta encabulada ao mestre. “Em algum momento, provavelmente na faculdade, descobri que as pessoas que falavam bem usavam palavras difíceis, que me impressionavam”, ela assumiu.
“A maneira como as pessoas escrevem – quanto mais difícil o estilo da escrita – mais intelectuais elas aparentam ser”, prosseguiu. “Quando leio algo e não entendo na hora o que significa, sempre dou ao autor o benefício da dúvida. Suponho que é uma pessoa inteligente e, se tenho dificuldade em entender, é porque não sou inteligente”.
A história é real. Está contada, com a devida autorização da aluna, pelo próprio professor, o sociólogo Howard S. Becker, da Northwestern University, em “Truques da escrita: para começar e terminar teses, livros e artigos” (Zahar).
Apesar do título meio equívoco, não é um manual com recomendações didáticas sobre como redigir bem, mas uma reflexão sobre os motivos pelos quais os textos acadêmicos são tão empolados e, no limite, ininteligíveis.
O restante da carta da aluna fornece boas pistas a respeito: “Pessoalmente acho a escrita acadêmica maçante e prefiro passar o tempo lendo romances, mas o elitismo faz parte da socialização de todos os estudantes de pós-graduação”. O professor Becker diz que, infelizmente, concorda com o diagnóstico.
Ele acredita que a falta de fluência e inteligibilidade dos textos acadêmicos não diz respeito à complexidade dos temas tratados, mas a uma deformação profissional, que associa o hermetismo à profundidade, a clareza à superficialidade.
“Isso explica um círculo vicioso realmente maluco, em que os estudantes repetem os piores excessos estilísticos que aparecem nas revistas acadêmicas, aprendem que são esses mesmos excesso que diferenciam seus trabalhos daquilo que qualquer idiota sabe e diz”, lamenta. Assim, os alunos “escrevem mais artigos como aqueles com que aprenderam, submetem esses artigos a periódicos cujos editores publicam porque não há nada melhor à disposição”.
Embora o livro de Becker, em certos trechos, pareça datado e anacrônico – quando, por exemplo, fala da revolução provocada pela chegada dos computadores pessoais e dos programas de edição de texto –, fornece boas ponderações sobre o tema. Em especial, ao revelar como costuma reescrever incansavelmente o próprio texto, desde o primeiro rascunho até a versão final, sempre em busca de limpidez e legibilidade.
Becker até confessa que, quando mais jovem, também tentou “escrever difícil para parecer mais inteligente”. Pelo menos até o dia em que recebeu de volta um artigo que mandara para uma revista científica, com a seguinte anotação do editor, à margem de um parágrafo particularmente empolado: “Droga! Droga! Droga!”.
Lembrei de quando, anos atrás, apresentei a primeira versão de um capítulo de minha dissertação de mestrado em semiótica para minha orientadora, a querida e saudosa Jerusa Pires Ferreira. Depois de ter lido toneladas de bibliografia da área, tentei mimetizar o estilo turvo predominante entre os semiólogos. “Isto está um lixo!”, demoliu Jerusa.
Diante de meu espanto, ela sapecou: “Esse texto não parece com você, está cheio de vícios e cacoetes acadêmicos, uma verbosidade hermética, metida a besta”. Recomendou-me: “Escreva a dissertação de modo claro e límpido, como sabe e gosta de fazer”.
Segui o conselho e nunca mais esqueci dele. Jerusa me ensinou que o conhecimento científico não é incompatível com a leveza, a elegância e o prazer.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.