Minissérie sobre Nara arrancou-me sorrisos, lágrimas e lembranças

Nara Leão sorriu-me com a boca lindamente enorme, o batom muito vermelho nos lábios

Fechei a porta azul da clínica de abreugrafia o mais rápido que pude. Desci a grade metálica, também pintada de azul, travei os dois ferrolhos inferiores e pus neles os cadeados de latão maciço, com hastes de aço cromado. Tinha 20 anos, era técnico de raio-x e cabia a mim, ao final do expediente, trancar o local antes de ir embora.

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Feito isso, com a bolsa de algodão cru recheada de livros a tiracolo, boina à cabeça, andava dali, do número 702 da avenida Tristão Gonçalves, até a praça da Estação. Depois descia a Castro e Silva em direção à Catedral. Margeava o Palácio do Bispo, prosseguia na Rufino de Alencar até a praça do Cristo Redentor, atravessando-a, para então chegar à Faculdade de Filosofia de Fortaleza – a extinta Fafifor, onde estudava.

Fazia esse mesmo trajeto, de segunda a sexta, em cerca de vinte minutos. Mas naquele final de tarde, comecinho da noite, seria diferente. Mataria as aulas noturnas e faltaria ao encontro habitual com os amigos no Malibu, o barzinho onde tomávamos cerveja durante os intervalos. Desviei o caminho logo no início, virando à direita na esquina da Tristão Gonçalves com Liberato Barroso, rumo ao Theatro José de Alencar. Era dia de show do Projeto Pixinguinha. Estava ansiosíssimo para ver e ouvir Nara Leão.

Acabara de comprar o novo álbum de Nara, na Tok Discos da praça do Ferreira: “Meu samba encabulado”, gravado poucos meses antes, naquele ano de 1983. Um LP repleto de faixas magníficas, embora uma delas me comovesse sobremaneira: “14 anos”, de Paulinho da Viola. Parecia minha própria história cantada em versos. Exatamente com aquela idade, 14 anos, pedira a meu pai um violão. Tal qual no samba, “ele então me aconselhou/ sambista não tem valor/ nesta terra de doutor”.

Apaixonara-me por Nara aos 16, assistindo ao clipe do Fantástico no qual ela cantava “Além do Horizonte”, de Roberto e Erasmo Carlos, deitada sorridente no convés de um barquinho à vela. Quando comecei a trabalhar na clínica de raio-x, aos 18, nunca mais perdi nenhum de seus lançamentos em vinil. Um de meus preferidos era “Romance popular”, de 1981, produzido pelos cearenses Raimundo Fagner e Fausto Nilo. A letra e a melodia de “Marinheira”, de Fausto e Fernando Falcão, era uma das coisas mais lindas que já ouvira – e segue sendo, quarenta anos depois.

Lembrei de tudo isso ao assistir à série “O canto livre de Nara Leão”, de Renato Terra, recém-lançada pela Globoplay. Um trabalho formidável de pesquisa de imagens e arquivos sonoros, que me fez rir e chorar em vários instantes dos cinco episódios. Fiquei torcendo, irrequieto, para que houvesse algum registro da turnê de Nara no Projeto Pixinguinha de 1983, acompanhada pela Camerata Carioca. Infelizmente, o disco “Meu samba encabulado” não é sequer aludido.

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Precisei, portanto, puxar pela memória para tentar reconstituir aquele que foi um dos espetáculos mais concorridos da história do Pixinguinha, tendo lotado plateias em todas as cidades por onde passou. Nara estava linda, aos 41 anos, cabelos ao ombro, de vestido curto vermelho e preto – o mesmo com o qual aparecia, à beira-mar, na capa do disco então recente. Assisti-a da torrinha do Theatro, onde os ingressos eram mais baratos, compatíveis com meu salário mínimo de técnico de abreugrafia.

Naquela noite, conheci dois jovens e talentosos artistas cearenses, Álcio Barroso e Amaro Pena, dupla que fez o show de abertura e vencera, no final do ano anterior, o Festival de Música do Povo, com a canção “Pretexto”. Voltaria a encontrar com ambos muitas vezes, nas perambulações noturnas, etílicas, musicais e literárias de nossa juventude no bairro do Benfica e na Praia de Iracema, em Fortaleza.

Ao final do show de Nara, dei um jeito de ir vê-la no camarim. Levava debaixo do braço um de seus discos, “Nasci para bailar”, de 1982. Pedi-lhe que o autografasse. Ao contrário do que temi, ela não impôs nenhuma dificuldade para receber aquele rapaz barbudo e magricela, que se apresentou como um de seus fãs mais apaixonados. Cantarolei-lhe um trechinho de “Imagina só” – música do cubano Sílvio Rodríguez, cuja versão feita por Chico Buarque ela gravara naquele LP.

Nara Leão sorriu-me com a boca lindamente enorme, o batom muito vermelho nos lábios. Disse-lhe então que, se um dia eu tivesse uma filha, ela iria se chamar Nara. Isso a fez sorrir de novo. Pedi-lhe um abraço, ela não se opôs. Saí dali em êxtase, assobiando suas canções.

Seis anos se passaram. Eu já era revisor deste Diário do Nordeste, iniciando minha carreira jornalística, quando a notícia chegou à redação. Nara Leão morrera, vítima de um tumor no cérebro, naquele 7 de junho de 1989.

Dezessete dias depois, em 24 de junho, nasceu minha filha, Nara.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.