“Volta pra tua terra!”, grunhiu um dos coleguinhas de turma de minha filha, português, dirigindo-se a outra aluna, imigrante brasileira, todos eles do sétimo ano da escola básica, na faixa dos doze anos de idade. O pequeno xenófobo não fala sozinho. O líder do partido de extrema direita lusitano já rosnou o mesmo, em pleno parlamento, contra uma colega deputada, originária da Guiné Bissau.
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O mau exemplo não deu em nada. Muito pelo contrário. O tal deputado foi reeleito. Seu partido, que tinha apenas uma cadeira na Assembleia da República, agora tem doze — e se tornou a terceira força política do país. Não à toa, nos últimos tempos, acompanhando a progressão geométrica da representação política dos extremistas de direita, tem crescido na mesma proporção o número de denúncias de racismo e xenofobia aqui em Portugal.
Na semana passada, o caso da menina brasileira de onze anos, espancada no pátio de uma escola portuguesa, chamou a atenção da mídia dos dois países. Mas a agressão contra a pequena Maria também não é um episódio isolado. O relatório “Discurso de ódio e imigração em Portugal” — elaborado pela Casa do Brasil de Lisboa, financiado pelo Alto Comissariado para as Migrações — traz números arrepiantes.
Mais de 75% dos entrevistados pelos organizadores do relatório dizem já ter sido alvo de agressões e discursos de ódio, baseados em preconceitos e estereótipos, pelo fato de serem imigrantes — 66% deles, brasileiros. Os serviços privados, a exemplo de comércios e bancos, dividem com as escolas e universidades a funesta liderança entre os principais cenários onde tem se manifestado a xenofobia.
“A nossa cor de origem é branca, todos nós sabemos”, afirmou, na mesma semana do espancamento de Maria, outro líder do tal partido de extrema direita, indicado para a vice-presidência da Assembleia da República. “Nossa raça é a raça caucasiana”, reforçou, para embasar um artigo de opinião no qual havia alegado que “todos os imigrantes são bem-vindos por cá, desde que respeitem a nossa raça”. O gajo foi além, no despautério:
“Nós, a partir do século XVI, quando nos espalhamos pelo mundo inteiro, fomos um exemplo de convivência entre todas as raças e todas as cores”.
Não adianta mandar o dito cujo estudar história. Não adianta lembrá-lo de que o povo português é resultado de um cadinho multiétnico e multicultural, gestado ao longo dos séculos pelo contributo dos mais diversos povos, incluindo mouros, negros e judeus. Adianta menos ainda tentar adverti-lo de que a lenda do “exemplo de convivência entre todas as raças e todas as cores” não resiste ao histórico de atrocidades da experiência colonial.
Já ouvi, da boca de um professor do doutorado em história da Universidade do Porto, que o colonialismo não foi necessariamente um mal, mas sim um grande benefício civilizatório, “por ter levado o iluminismo a povos selvagens”. Podem acreditar: o “lusotropicalismo”, conceito forjado pelo brasileiro Gilberto Freyre para defender a suposta “docilidade” da colonização lusitana, ainda faz sucesso em certos meios acadêmicos por aqui.
“Europa aos europeus, viva a Europa branca”, dizia uma pichação deixada, ano passado, em um dos muros da Universidade Católica Portuguesa. “Zucas [de ‘Brazucas’, termo pejorativo para se referir aos brasileiros], voltem para as favelas! Não vos queremos aqui!”, dizia outra. No banheiro da Universidade do Porto, já li coisas ainda mais impublicáveis, principalmente contra mulheres.
Os brasileiros não param de chegar a Portugal. Já são mais de 350 mil. Muitos, aliás, bolsonaristas. Nas últimas eleições presidenciais, Jair Bolsonaro teve 64,4% dos votos dos imigrantes brasileiros em Lisboa; e 66,5% dos que moram aqui no Porto. Alguns destes, seduzidos pelos discursos de ódio do partido de extrema-direita, filiaram-se a ele. Pois agora, dizem os jornais, andam reclamando de estar sendo vítimas de discriminação e xenofobia por parte dos próprios correligionários — pelo fato de serem “Zucas”.
O episódio do colega xenófobo de minha filha vai ser discutido pela escola, nas próximas horas, em reunião agendada com os pais. Aguardo os desdobramentos. Por enquanto, deixo-lhes um caso exemplar, ocorrido comigo mesmo. Um leitor português, após ter lido um de meus livros, saiu-se com o seguinte comentário: “Achei bem escrito, nem parece ser de autor brasileiro...”
Achou que estava fazendo um elogio.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.