Quando mudei para Portugal, há cerca de dois anos e meio, logo estranhei a forma como os daqui, durante uma conversa informal, usam o nome do interlocutor, na função sintática de sujeito da oração, seguido do verbo conjugado na terceira pessoa do singular. “O Lira está a gostar de nosso país?”, perguntavam-me, por exemplo, dias após a chegada. “O Lira vai adorar as tripas à moda do Porto”, profetizaram-me.
Achei curioso e, mesmo sem entender o fenômeno, acabei por me habituar a ouvir tal construção, nas mais diferentes situações. “O Lira está bem acomodado?”, indagou-me o senhorio do primeiro apartamento que aluguei no Porto. “O Lira precisa conhecer os autores fundamentais da historiografia nacional”, recomendava-me um colega historiador. “O Lira” isso, “o Lira” aquilo. Nada de “tu”, muito menos de “você”.
Aos poucos, compreendi que usar o nome do interlocutor com o verbo na terceira pessoa durante um diálogo é uma maneira — ao mesmo tempo cordial e respeitosa — de se contornar a utilização instantânea do “tu”, a segunda pessoa do singular, pronome que, para muitos, por aqui denota uma familiaridade reservada apenas aos íntimos.
Mas logo reparei em algo ainda mais insólito. Sempre que eu tentava responder ou dirigir-me ao interlocutor português utilizando-me do prosaico “você” — pronome de tratamento que no Brasil normalmente empregamos para demonstrar proximidade e cortesia —, recebia de volta as reações mais ambíguas. Ora os gajos encaravam-me com ar de pasmo; ora disparavam-me semblantes de notória indignação.
“Qual carne você recomenda para uma boa sopa?”, perguntei certa vez, em tom cordial, ao balconista do “talho” (o açougue, por aqui), que me mandou uma cara de espanto, os olhos arregalados, antes que eu conseguisse terminar a frase.
“Por favor, você sabe para qual lado fica o Jardim da Cordoaria?”, indaguei de outra feita, na rua, a uma “rapariga” (uma moça, por cá), que ato contínuo me virou o rosto e saiu andando, deixando-me sem resposta.
Após alguns incidentes do gênero, recorri aos primeiros amigos que fui fazendo no Porto para tentar decifrar a atitude dos portugueses quando nos dirigimos a eles por “você”. “O Nuno sabe me explicar o que acontece?”, indaguei a um deles. “O Rui pode me ajudar a entender o que se passa?”, perguntei a outro.
Nos dois casos, como se vê, já fui tomando o cuidado de incorporar os códigos linguísticos locais para não ferir possíveis susceptibilidades.
Por mais desconcertante que pareça, ouvi explicações diametralmente opostas. Nuno me disse que o pronome de tratamento “você”, em Portugal, é carregado de excessivo formalismo, e que por isso não deve ser aplicado na linguagem cotidiana. Daí o espanto do balconista do talho, ele comentou.
Rui, por sua vez, explicou-me o contrário. “‘Você’ é linguagem de estrebaria!”, exclamou, advertindo-me que tratar alguém dessa forma é um atestado de incivilidade, grosseria e pouca cultura. Por isso a repulsa manifestada pela mocinha a quem pedi orientação na rua, alegou.
Passei a entender menos ainda a reação inesperada dos portugueses ao uso do “você”. Tal pronome de tratamento representaria excesso de formalismo, como me garantiu o Nuno, ou falta de educação, como me assegurou o Rui?
Fui ler um pouco sobre o assunto e, depois de consultar alguns artigos de sociolinguística, fiquei mais confuso. Até concluir que ambos, Nuno e Rui, acreditem vocês, têm idêntica carga de razão.
O antigo “Vossa Mercê” era um pronome de tratamento dado a pessoa de grande cerimônia, conforme sabemos. Era assim que os súditos dirigiam-se aos reis, pelo menos até o Século XV, quando os monarcas lusos passaram a exigir o uso de “Vossa Alteza” e, posteriormente, de “Vossa Majestade” — o que terminou por generalizar o “Vossa Mercê” para os fidalgos em geral.
Quando, gradativamente, surgiram o “Vossa Excelência” e o “Vossa Senhoria”, usados para distinguir as faixas média e superior da nobreza, assim como os funcionários do governo e a alta burguesia, a forma coloquial de “Vossa Mercê” — já derivada para “vossemecê”, “vosmecê” e, enfim, “você”— ficou reservada em Portugal aos serviçais e ao povo.
É este sentido socialmente diminuidor do termo que consolidou-se entre muitos falantes do português europeu. Para estes, “você” soa hoje como linguagem de estrebaria. Curiosamente, para outros, a palavra ainda guarda resquícios de certa formalidade afetada, ou seja, um protocolo linguístico utilizado por quem se acha superior, na intenção de demarcar um distanciamento social em relação ao outro, o que faz com que o termo denote arrogância e pedantismo.
O assunto remete à teoria da cortesia linguística e, por demais complexo, é impossível de aprofundar em um artigo rápido de jornal. De todo modo, por vias das dúvidas, tenho aprendido que, por cá, é melhor utilizar as duas estratégias que os próprios portugueses empregam entre si, para evitar possíveis mal-entendidos quando estão a interagir e a conversar um com o outro.
A primeira é recorrer ao sujeito oculto, simplesmente suprimindo-se o pronome pessoal: “Sabes onde posso comer um bom prato de tripas à moda do Porto?”, eles perguntariam, assim mesmo, sem explicitar o “tu”, para não denotar uma intimidade forçada.
Para um brasileiro — e cearense — que, como eu, não está assim tão afeito a conjugar automaticamente o verbo na segunda pessoa do singular, pode-se fazer perfeitamente o mesmo com o verbo na terceira pessoa: “Sabe onde posso comprar a sardinha mais fresca da cidade?”.
A simples eliminação do “você” evita estranhamentos desnecessários. Mas a segunda estratégia é melhor ainda: deixar o verbo na terceira pessoa, antecedido pelo nome do interlocutor. Soa simpático e, para meus ouvidos, tem um sabor lusitano todo especial. “O Nuno concorda comigo?”, perguntei-lhe. Ele disse que concorda. “O Rui considera que assim está bem?”. Ele disse que considera.
Pois, então, pronto. Não custa nada ser cortês quando se está a desfrutar da hospitalidade na casa alheia. O que é que tu acha, heim, meu amigo, conterrâneo e leitor cearense?
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.