Em 2024, cinema cearense circulou de forma inédita do Brasil a Cannes, celebrou centenário e mira futuro

Recorde de estreias, reconhecimento em festivais nacionais e internacionais e construção de bases para próximos passos fortaleceram produção cinematográfica do Estado em 2024

Escrito por
João Gabriel Tréz joao.gabriel@svm.com.br
(Atualizado às 15:22)

Aquilo que é conquistado em um período específico de tempo não existe de forma alheia ao que veio antes e virá depois. A afirmação, ainda que óbvia, é evidenciada pelo que foi 2024 para o cinema cearense, que neste ano celebrou o marco simbólico de 100 anos, a chegada inédita a Cannes e oito estreias comerciais de longas no circuito nacional.

Da forte presença da produção do Estado na Mostra de Tiradentes, realizada em janeiro, à estreia de “Soldados de Borracha”, documentário de Wolney Oliveira lançado em dezembro, o ano não apenas foi construído a partir de movimentos anteriores, mas nele se construíram bases para passos futuros.

Construções de cenários

A ideia de “construção anterior” pode tanto remontar ao ano de 1924 — quando ocorreu a primeira exibição da qual se tem registro de um filme creditado a um realizador cearense —, quanto ao fato de que a maior parte dos lançamentos recentes do Estado foi de longas que chegaram às salas reconhecidos antes em festivais nacionais e internacionais.

“Estranho Caminho”, de Guto Parente, por exemplo, foi premiado em Nova York em 2023 e, em janeiro deste ano, levou o Prêmio da Crítica em Tiradentes. Outros caminhos importantes também foram pavimentados no evento mineiro a partir de um cenário inédito e relevante no qual profissionais trans foram maioria nos curtas cearenses selecionados. 

Neste grupo, a Vila das Artes desponta como lugar de abertura e fomento para a formação de cineastas trans e travestis no contexto de Fortaleza, como destacou o curador Francis Vogner dos Reis à coluna em janeiro. 

“Vemos hoje fortemente, mas vem de certo tempo, (...) em ‘Tremor Iê’, ‘Canto dos Ossos’ (longas cearenses exibidos em Tiradentes) e em curtas em especial que vieram da Vila das Artes”
Francis Vogner dos Reis
curador da Mostra de Tiradentes em entrevista à coluna

O panorama no qual despontam nomes como Ella Monstra, izzi vitório, Bruno Lobo La Loba — que exibiram curtas no evento —, Linga Acácio e Noá Bonoba — ambas de "Estranho Caminho", a primeira como diretora de fotografia e a segunda, atriz e preparadora de elenco  —, por exemplo, se sustenta a partir do próprio fortalecimento mútuo de profissionais trans e das políticas públicas de acessos.

A coletividade, como pontuou Ella ao Verso também em janeiro, “é uma das maiores estratégias que temos para vencer em um mundo que nos quer fazer perder”. “Adentrar alguns espaços hoje em dia já é possível, mas permanecer neles é difícil. Quando não estamos sozinhes, é mais possível alçar outros voos”, dialogou izzi.

Recorde de estreias cearenses

Também estreias deste ano, “Quando Eu Me Encontrar”, de Michelline Helena e Amanda Pontes, e “Greice”, de Leonardo Mouramateus e com Amandyra, Dipas e Faela Maya no elenco, saíram premiados no Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba respectivamente em 2023 e 2024. Junto delas, outros cinco longas cearenses chegaram comercialmente aos cinemas do País no período.

O número de lançamentos do Estado em 2024 chegou, então, a oito, igualando — conforme apontou levantamento histórico feito pela coluna que leva em conta dados da Agência Nacional do Cinema (Ancine) — recorde já alcançado em 2019 e 2022.

O resultado é, naturalmente, quantitativo e, além, circunstancial, tendo sido potencializado pelas chamadas públicas que auxiliaram parte dos filmes com recursos para distribuição — área que, por vezes, é apontada como um dos principais gargalos da cadeia audiovisual.

Em uma semana do ano, cinco dos oito lançamentos estiveram em cartaz ao mesmo tempo — notadamente, porém, somente as salas do Cinema do Dragão, que completaram 11 anos em 2024, abriram espaço em Fortaleza para todas as estreias cearenses do ano nesse recorte específico.

Na Cidade, somente o Cineteatro São Luiz exibiu, também, todos os lançamentos cearenses ao longo de 2024, em programação especial que celebrou o centenário do cinema cearense. 

Além desse espaço, o São Luiz ainda acolheu as pré-estreias nacionais de "Vermelho Monet" e "Motel Destino", evidenciando o lugar de destaque do audiovisual cearense não só em termos de produção, mas de exibição.

O cenário de salas públicas também teve ganhos em 2024. Ainda que a situação geral do Estado siga sendo de concentração na Capital, é possível celebrar a abertura da Sala Seu Vavá no Cineteatro São Luiz, em Fortaleza; a reabertura do Cine Falb Rangel em Sobral; e, ainda, a chegada de nova sala em Itapipoca e o anúncio de outra em Baturité pelo projeto Cine+.

Ceará em Cannes

2024 ficou também marcado por ter sido a primeira vez que um filme gravado no Estado, com equipe e elenco majoritariamente cearenses, chegou ao prestigiado Festival de Cannes. O já citado “Motel Destino”, de Karim Aïnouz, levou forró para o tapete vermelho e Beberibe para a telona do evento.

No filme, nomes como Iago Xavier, Nataly Rocha, Fabíola Liper, Jupyra Carvalho e Yuri Yamamoto figuraram no elenco e no próprio festival. A presença do Estado foi pioneira ao se tratar da competição pela Palma de Ouro, mas veio na esteira de participações anteriores que se deram de outras formas.

Karim já esteve em outras seções e com filmes gravados fora do Estado; o sobralense Luiz Carlos Barreto compôs equipes de diversos longas brasileiros que passaram por Cannes; e é possível citar ainda de Rachel de Queiroz — que assina diálogos de “O Cangaceiro”, exibido em 1953 — a Silvero Pereira e Rodger Rogério — alguns dos destaques cearenses do premiado “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.

Como passo futuro, a presença de “Motel Destino” e Karim em 2024 também abriu portas para a parceria entre o Ceará e o Festival de Cannes a partir do projeto “La Factory des Cinéastes Ceará-Brasil-Cannes”.

Firmado entre o Governo Estadual e a Quinzena de Realizadores, ele prevê a realização de quatro produções gravadas no Estado que terão, ainda, exibição garantida na sessão independente do evento francês em 2025.

Bases que miram o futuro

Do panorama da diversidade de vozes e presenças atrás ou à frente das câmeras e chegando ao alargamento previsto de participação do Estado em Cannes, os horizontes futuros para o cinema cearense devem se relacionar, todos, pelo caminho de construção da Ceará Filmes.

Projeto do Governo do Estado lançado em 2017 e dedicado ao desenvolvimento do setor audiovisual, ele passou pelos primeiros passos de concretização ao longo deste ano com a realização de seminário temático e deve se consolidar em 2025 para ser implementado em 2026.

A promessa e intenção, segundo definiu a secretária da Cultura do Estado Luisa Cela à coluna em agosto, são a de que a Ceará Filmes, em dois anos, esteja “operando e fortalecendo as políticas para o audiovisual no nosso Estado”.

O olhar voltado para políticas estruturantes — que sejam base não apenas para movimentos já em curso, mas também possibilidades novas — convoca a outro olhar: um de acompanhamento e cobrança, quando necessário, em relação prazos e planos anunciados.

É fato que o cinema cearense, em 2024, desponta fortalecido e pujante, e ainda que tal fato ocorre em grande parte apoiado em políticas de Estado. É fato, também, que adiamentos e demoras nos processos de editais também ocorreram ao longo dos meses neste ano

Mirando o futuro, já é possível ansiar tanto pelos caminhos que obras como "O Shaolin do Sertão 2", "Feito Pipa" e "Centro Ilusão" devem traçar em 2025, quanto pelo fortalecimento de compromissos, experiências e vozes múltiplas na produção cearense.