O movimento artístico da 35ª Bienal de São Paulo evita a queda do céu
Fortaleza foi uma das catorze cidades escolhidas para receber a seleção da Bienal
Em dezembro de 2021, estava numa sala de aula on-line. Diane Lima ministrava um módulo de práticas curatoriais. Aquela mulher com olhos enérgicos possuía uma articulação teórica magnética. Enquanto exercício, ela solicitou que a turma apresentasse um texto curatorial. Inspirado em suas incitações, anunciei neste dia o meu escrito “Sentar à mesa”:
“Tirei a renda. Forrei a mesa. Hora do almoço. Servi o amor. Aqui se partilha pão, fé e inventividade. Manutenção, troca, circulação de energia. No toré com os encantados, no xirê envoltos dos laços do axé, na última ceia e na comunhão. Quem está na cabeceira? Para quem estamos passando o copo d’água? Qual aperto de mão inspira novas construções? Quem recebe nossas flores? Na geografia das narrativas, uma política montada no lombo da marginalização estabelece um projeto que se fundamenta em uma necromemória que ceifa os pensamentos, as práticas e os afetos. Falo de nós: corpos desviantes. Cor, cabelo, língua e desejo. Tudo enquadrado como elementos forasteiros do púlpito. Eu quero falar: “cumé que a gente fica? Pronunciar, prosear, discutir, anunciar. Como dizia Audre Lorde, “meus silêncios não me protegeram.” A ceia está posta. Em memória de mim, em memória de nós. Em Umoja reordenamos as estruturas de dominação da escrita, da escuta, da projeção e da forma. É Ayoluwa, a alegria yorubá, que fermenta essa gira. Age sem pretensão de salvação e, na mesma medida, sem disposição para o sacrifício. Essas bordas, esses estilhaços, esses pedaços compõem “a roda dos não-ausentes”. Reparem: nós estamos aqui.” (Barbosa, 2021, São Paulo)
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Naquela aula, Diane Lima, com firmeza e encantamento, discorreu ainda sobre as encruzilhadas da poeta e professora Leda Martins. Com elas, percebi a arte como esse lugar de cruzo: campo de probabilidade, insurgência, contingência e criação. Um misto de correnteza e magnificência. Aquele corpo indomável que existe para avivar o motim da descolonização e renovar a perspectiva da institucionalização. A cultura de encruzilhada enquanto um “lugar radial de centramento e descentramento, intersecções e desvios”, como define Martins. Espaço que suscita uma perspectiva de construção de institucionalidade e pondera as oxidações de instituições que fomentam esse sistema dito moderno que teima em fortalecer a ideia de que não há solidariedade entre as singularidades e alteridades e que nega e asfixia a rede sistêmica dessas corporeidades sensíveis.
Diane Lima, essa mestra que me ativou vulcões, em companhia de Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel, assina a curadoria da itinerância da 35º Bienal de São Paulo, com o título coreografias do impossível. Fortaleza foi uma das catorze cidades escolhidas para receber a seleção da Bienal. No dia 10 de setembro, o Museu de Arte Contemporânea do Ceará (MAC-CE) do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura apresenta as obras de Deborah Anzinger, Denilson Baniwa, Gabriel Gentil Tukano, Katherine Dunham, Leilah Weinraub, MAHKU (Movimento dos Artistas Huni-Kuin), Maya Deren, Melchor María Mercado, Nadir Bouhmouch e Soumeya Ait Ahmed, Nontsikelelo Mutiti, Nikau Hindin, Rosa Gauditano, Simone Leigh e Madeleine Hunt-Ehrlich.
A prática curatorial que cartografa coreografias do impossível nos convida a uma experiência que rompe com a hierarquização de saberes. Pinturas, esculturas, vídeos, fotografias, contos, instalações, ensaios e álbuns de paisagens me dizem que não há um só caminho para um processo de criação que se fundamenta no conceito de universalidade, base primordial para o ordenamento de um projeto político de dominação.
As criações de Katherine Dunham, que explora linhas e ondulações, e surgem de uma mistura entre o balé clássico europeu e as danças caribenhas, me dizem que não há um só caminho e que pensar em saídas para atravessar as relações de poder e seus regimes de visibilidade e verdade é optar por uma via de criação transcriativa, transcultural e pluriétnica.
Os pigmentos, as cores e as linhas de Nikau Hindi, materializados na casca da amoreira (tecido maori tapa), traçam um mapa estelar e uma perspectiva ancestral sobre o mundo. Essa obra me diz que não há um só caminho e diversos são os terreiros da liberdade criativa que refundam a perspectiva de atuação, ampliam os diálogos de saberes, desterritorializam o pensamento e difundem as narrativas fundadoras.
“Vendo tela, compro terra” é um comando insurgente do coletivo de artistas indígenas da etnia Huni Kuin, da Aldeia Chico Curumin, no Alto Rio Jordão, estado do Acre. A entonação dos cantos Huni Meka e sua tradução visual me dizem que não há um só caminho é que é inadiável desarticular os espaços de privilégio e opressão na tentativa de visibilizar e agenciar as alternativas de reordenamento de discurso, considerando a influência e a potência de saberes que residem nas pluralidades das experiências.
Coreografias do impossível emerge como esse lugar que rompe os binarismos e opera na dimensão da possibilidade. Lança aos nossos olhos outros mundos e outras perspectivas de compreensão de uma produção criativa que perduram nesta afluência. De forma visceral, acima das exclusões e violações, ao clamor da liberdade, de braços dados com as diversidades, as obras desta itinerância se agarram a um frenesi de uma dança cósmica, ancestral e destemida. Aqui, a arte faz da nuvem seu lugar de invenção e se atreve, com este desejo ardente, a despir o cosmo. É o encantamento movimentado pela itinerância da 35º Bienal de São Paulo que protege o céu de cair.