'Eu não tenho a bolha da proteção': mulheres negras na política

Acompanhei as eleições e analisei dados de candidaturas ao pleito municipal cearense com o intuito de aprofundar uma questão

Legenda: No palanque do poder político, onde estão essas mulheres negras?
Foto: Nayana Melo

“Foi então que uns brancos muito legais convidaram a gente prá uma festa deles, dizendo que era prá gente também. (..) Chamaram até prá sentar na mesa onde eles tavam sentados, fazendo discurso bonito, dizendo que a gente era oprimido, discriminado, explorado. Eram todos gente fina, educada, viajada por esse mundo de Deus. Sabiam das coisas. E a gente foi sentar lá na mesa. Só que tava cheia de gente que não deu prá gente sentar junto com eles. Mas a gente se arrumou muito bem, procurando umas cadeiras e sentando bem atrás deles. Eles tavam tão ocupados, ensinando um monte de coisa pro crioléu da plateia, que nem repararam que se apertasse um pouco até que dava prá abrir um espaçozinho e todo mundo sentar junto na mesa. E era discurso e mais discurso, tudo com muito aplauso. Foi aí que a neguinha que tava sentada com a gente deu uma de atrevida. (..) Ela se levantou, foi lá na mesa prá falar no microfone e começou a reclamar por causa de certas coisas que tavam acontecendo na festa.(...) Tá na cara que os brancos ficaram brancos de raiva e com razão. Tinham chamado a gente prá festa de um livro que falava da gente e a gente se comportava daquele jeito, catimbando a discurseira deles. Onde já se viu? Se eles sabiam da gente mais do que a gente mesmo?”

Essa é a epígrafe do artigo “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, de Lélia Gonzalez. Para mim, é impressionante como uma pequena reflexão consegue retratar de forma fiel a nossa estrutura de sociedade (dominado e dominador). Sempre me despertou atenção o movimento daquela “neguinha”. A negra que se incomoda com o lugar que lhe é destinado, a negra que se levanta para ocupar o primeiro plano da cena, a negra que não se subjuga àquela organização dominante, a negra que segura o microfone para traçar críticas, e não para ser subserviente.

Acompanhei as eleições e analisei dados de candidaturas ao pleito municipal cearense com o intuito de aprofundar uma questão: no palanque do poder político, onde estão essas mulheres negras?

Somos 184 municípios cearenses, dos quais 102 cidades elegeram homens e mulheres brancos para ocupar o cargo do poder executivo municipal. Candidatos que se autodeclaram pardos, alcançaram a vitória em 79 municípios. Rondilson (PT), de Salitre, foi o único prefeito preto eleito.

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Em Caucaia, Catanho (PT), outro candidato autodeclarado preto concorre ao segundo turno. Nesta eleição cearense, 39 prefeitas foram escolhidas nas urnas. Dentre elas, 26 candidatas se declararam brancas e 13 se declararam negras (pardas). Nenhuma candidata se declarou negra (preta).

Em 2020, a deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) apresentou ao TSE uma proposta de incentivo a candidaturas negras na política brasileira. Diante disso, algumas decisões foram tomadas a fim de estimular a diversidade na representatividade política. A implementação de um fundo especial de financiamento de campanha (FEFC) para esse grupo minoritário foi uma das propostas consolidadas.

É notório que o sucesso da candidatura da mulher branca é superior ao progresso político das mulheres negras (pardas e pretas).Tal como as candidaturas masculinas são predominantemente presentes neste pódio. Apesar do incentivo às candidaturas dessas mulheres, é válido lembrar que uma série de acessos políticos negados historicamente torna árdua a construção de uma trajetória política.

Mesmo com a instalação do fundo especial, o atraso do repasse das verbas, o subfinanciamento das campanhas, a concentração dos partidos nas campanha dos candidatos brancos e os recorrentes registros de informações étnico-raciais inverídicas fornecidas pelos candidatos para acessar os recursos do FEFC são algumas das dificuldades apontadas pelas candidaturas negras.

Adentrar no sistema político requer muito mais que um convite para disputar as eleições. A lógica política brasileira é assentada em um pacto da branquitude que envolve a posse e a transferência de herança política, bens e patrimônios, capital cultural e códigos de uma classe dominante. Os herdeiros escravocratas, tradicionalmente, tomam posse das cadeiras do poder.

É urgente citar essas lógicas de composição daqueles eleitos para pensar e executar as políticas públicas. Na mesma medida, é inadiável saudar aquelas que conseguem promover a ruptura desse funcionamento político.

Por isso, é salutar celebrar os encontros, os feitos, a energia de vida, a fé na mudança e, principalmente, o pensamento de construir de forma colaborativa, e seguir com a mão no microfone e o pé na sua base (comunidades, associações, igrejas, coletivos, grupos culturais, movimento estudantil, projetos sociais, movimentos de moradia popular e grupos políticos).

“Cê só vai ser o maior do Brasil,  depois que for o maior da sua rua”, é assim que canta Djonga. Esse senso de coletividade é o elemento “x” no processo de estremecimento dessa herança política marcada por expropriação e violência.  

Candidatas
Legenda: O senso de coletividade é o elemento “x” no processo de estremecimento dessa herança política marcada por expropriação e violência
Foto: Reprodução/Arquivo pessoal/Redes sociais

Hoje, dedico esse artigo às mulheres negras eleitas pelo voto popular. Em nome de tantas candidatas negras espalhadas pelo nosso Brasil, aplaudo a vitória de:

  • Mariana Lacerda (CE)
  • Adriana Gerônimo (CE)
  • Professora Adriana Almeida (CE)
  • Eliete Paraguassu (BA)
  • Luana Alves (SP)
  • Tainá de Paula (RJ)
  • Jô Oliveira (PB)
  • Thais Ferreira (RJ)
  • Maíra do MST (RJ)

Avante e sem esquecer jamais que haverá sempre um sonho coletivo em sua retaguarda.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

 

 

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