A série documental ‘Pra Sempre Paquitas’ estreou no dia 16 de setembro na Globoplay. A obra é estruturada em cinco episódios e conta com a participação de 27 paquitas. A produção exibe depoimentos das assistentes de palcos e imagens de registro dos programas Xou da Xuxa, Xuxa Park (1994-2001), Xuxa Hits (1995) e Planeta Xuxa (1997-2002). O documentário, dominado por sentimentos, projeta histórias de bastidores, frustrações, conquistas e mágoas. Provoca ainda um debate político em torno da inclusão, da diversidade e da autoestima das crianças que se desenvolveram diante do padrão estético referenciado pelo perfil das garotas selecionadas para o cargo de “paquitas”.
Lancheira, bolas, acessórios de cabelos, sandálias, bonecas, roupas, perfume, cadernos, doces, meias, canetinhas, telefones, almanaques, mochilas, relógios, sopas, sucos, almanaques, álbum de figurinhas, papel de cartas, fantasias. Tudo tinha a marca do “X”. E ele é branco, loiro, magro e tem os olhos claros. À frente de um universo regido por serviços e produtos que determinam um tipo de ser, como fica o protagonismo de crianças não representadas por esse carimbo? Dentro desta estética de branqueamento, de que forma este movimento afeta a construção da individualidade dessas meninas?
Fãs da “rainha dos baixinhos”, elas colecionavam LPs, fotografias e bonecas. Regina, de seis anos, cantava com as amigas a canção “Doce mel”, do álbum “Xou da Xuxa”. Com cabelos amarrados com “xuxinhas" e roupas coloridas, elas imaginavam estar no palco, onde eram estrelas da televisão. “Eu sou a Xuxa e tu é a Mara, Regina. E só a gente pode pegar o microfone.”, ordenou a coleguinha. Regina, ainda que triste por ter sido colocada naquela posição, aceitou a condição para se encaixar no grupo e continuar a dançar as músicas do programa que adoçava suas manhãs. Regina nunca era escolhida para ser o par de alguém da dança. Ela admirava a beleza da Pituxa 2, a atriz Letícia Spiller. “Se eu fosse assim, podia ocupar outro lugar”, pensava assim a pequena menina do Centro de Fortaleza.
Cícera, aos seus dez anos, tinha convicção do seu brilho. Na brincadeira, liderava o grupo. Nos concursos inventados por ela, desempenhava a função de apresentadora, jurada e modelo. A mãe, costureira, confeccionava as roupas e as fantasias da alegre criança do bairro Otávio Bonfim. Para ser paquita bastava saber dançar, cantar, falar bem e ser bonita. Cícera avaliava possuir todos os requisitos e se não chegou a se apoderar do cargo de assistente de Xuxa foi pelo simples fato de não morar no Rio de Janeiro. Ao olhar para o espelho, Cícera sabia que era uma estrela e, na ânsia de não ser invisibilizada, em qualquer espaço, corria para aparecer em primeiro plano. Quando a candidata Michele Martins não foi escolhida, essa garotinha perguntou: - Ué, mas por quê não? Ela sabe cantar, dançar e é bonita!
“Ainda que cresçamos em um lar regido por afeto e respeito à nossa identidade, fora de casa gritarão: “você é negra?!., desabafa Cícera, que hoje, aos 39 anos, segue enfrentando o racismo e percebe como seus adeptos, no presente e no passado, determinam quem oprimir e quem privilegiar. Na ausência de representatividade social na mídia brasileira, a construção de identidade e a auto valoração saem fragilizadas desses processos. Ao reforçar que os corpos desviantes desse padrão estético não devem ter presença narrativa, perpetuamos uma herança de exclusão e dor. A consciência da veracidade do preterimento, do estigma da hipersexualização e do procedimento imposto para modular ou negar o corpo a fim de caber em um espaço, não tornam esse sonho tão bonito. Viver o “é tão bom, bom, bom, bom” é uma regalia de um pacto que nos desatende.