Uma bebê na pandemia

Legenda: Sei que muitos que leem não só sabem, mas sentem o que eu estou dizendo: o choro do nosso neném é uma lâmpada mágica
Foto: João Paulo de Souza/Pexels

Mãe e irmãos com comobirdades, sogros idosos. Quase tudo estava fechado e já tínhamos notícias de conhecidos mortos. Dezenove eventos desmarcados, cinco anunciantes desistiram, nenhuma reunião para próximos trabalhos. Na advocacia, um cliente cancelou o contrato comigo porque outro advogado se ofereceu baixando o preço para um patamar irreal; um outro cliente simplesmente deixou de ter como pagar; um terceiro pediu meses de moratória. E já não dava mais para executar o plano de se mudar da casa pequena e distante, quase sem espaço para fazer audiências online, muito menos para cuidar de uma neném. Nenhum real na poupança.

Não era nesse contexto que esperávamos que Maria Luísa chegasse. Fruto de tanto esforço, planejamento, sonho, choro, o amor da nossa vida chegou quando o mundo estava se acabando.

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A gestação a partir do quarto mês já foi de total isolamento, eis que o decreto já vigorava. Eu só saia de casa para fazer compras, ainda assim de faceshield, máscara, álcool em gel e muita organização, e para as consultas da mãe, também firme nos cuidados e na esperança.

Hoje, posso confessar que chorei escondido, apavorados que estávamos no momento mais importante da nossa vida. Estávamos quebrados - enquanto tantos quebraram a quarentena e, lamentavelmente, a cara, com o perdão dos trocadilhos. Nunca foi engraçado saber de pessoas que teimaram e morreram. Isso nos causava mais agonia e aflição.

Já havia passado quase duas semanas da data prevista, e Malu não queria nascer, como que intuindo a confusão onde chegaria. Depois de 18 horas de trabalho de parto, às 3h25min do dia 2 de julho de 2020, com 3.350 gramas, 49 centímetros, parto normal, Cibely fez a mágica: inventou uma pessoa nova e um mundo novo para toda uma família. Um superpoder que mudou a cor de várias vidas.

É literalmente difícil de continuar a escrever quando lembro da Cibely serpenteando e gritando, do sangue, da música, da equipe. Do choro. De Malu nos nossos braços.

Naquele hospital, quando também nasceram uma mãe e um pai, um poema cheio de dor e beleza se escrevia.

O começo do poema diz que um dia o amor de verdade bate à sua porta e que, depois, ele quer e vai crescer, não importando a aridez do momento; o medo surge como vilão recorrente; todas as emoções e pessoas compõem uma história de luta, com derrotas temporárias e êxitos colossais, e o final do poema é, na verdade, uma frase que marca um novo começo: a vida se impõe.

Malu nasceu. Aliás, milhares de Malus e seus respectivos cordéis no Brasil. Quatrocentos e cinquenta mil indo embora, apenas Malus são capazes de trazer apanágio ao coração de quem fica. São crianças que têm tatuadas na cara a esperança, que têm na alma a cura para corações e mentes, que têm na voz toda a música que nos foi impedido cantar. Elas nos falam, caladas, que é preciso seguir.

Malu
Legenda: Maria Luísa
Foto: Arquivo pessoal

Sei que muitos que leem não só sabem, mas sentem o que eu estou dizendo: o choro do nosso neném é uma lâmpada mágica que nos recupera o presente e o futuro. É como se só tivéssemos isso, mas isso é muito mais e melhor que tudo que já tivemos.

Maria Luísa só vê pessoas de máscara, com exceção dos pais em casa. Com os atuais dez meses de vida, esfrega as mãozinhas como se passasse álcool, tem grande curiosidade em saber para que serve um termômetro de testa e raramente se encontra com avós e amigos. Foi vacinada como uma criança comum, embora esteja num país onde há quem se porta como sommelier de vacinas. Já tem dois dentinhos, dorme a noite toda e gripou duas vezes. Chora menos que os pais, e não precisa esconder. Torna os pais felizes e fortes, contudo. 

Disse-nos ontem, mais uma vez, entre um sono, um sonho e uma limpeza de nariz, que é preciso seguir. Eu não sei bem se estávamos acordados quando ouvimos, mas compreendemos. E seguimos.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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