Domingão de noite, obedecendo firmemente à quarentena, a bebê já dormindo e peço um trio de cervejas artesanais para comer o resto do peixe. Aquela peixada deliciosa, cheia de condimentos, estava na mesa desde o almoço: nem a consciência permitiu botar no lixo nem a preguiça guardar na geladeira. Optei por saborear aquilo tudo sem ver a catástrofe na TV. E dormir de rede, então? Uma delícia adulta.
5h da manhã do dia seguinte, entretanto, fui despertado pela necessidade fisiológica que, como qualquer outra, nos iguala a todos. Isso acompanhado de febre, fraqueza e uma dor de cabeça sem tamanho, latejando o fundo do olho.
Será Covid? Claro que fui ao Google ver que diarreia, febre e mal-estar têm sido sintomas. Devo testar já? O teste de farmácia adianta? Vale à pena se expor à contaminação num dos hospitais da cidade?
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Resolvi, devidamente paramentado com oxímetro e termômetro, e agora consumindo chás e sopas, esperar um pouco. Isolei-me da bebê e da esposa e dei graças a Deus que isso é possível na casa nova, sem atrapalhar ninguém.
Alguns clientes tiveram que saber. Os de mais idade (e que não têm o meu Instagram) se arriscaram: tome imediatamente ivermectina. Deixei sem resposta e não tomei.
Fiz um retrospecto minudente dos últimos sete dias e vi uma hipótese: fui abraçar um amigo-irmão que perdeu a mãe para essa doença, embora eu estivesse de máscara PFF2. Deve ter sido lá, pensei.
Segunda e terça foram longos dias de fundo de rede, de dor de barriga, de cabeça e de mal-estar, mas resolvi enfrentar pendências jurídicas da minha família no computador. Como eu achava que podia morrer breve, concentrei-me nas situações mais importantes. Sei lá, eu estou gordinho, amigos gordinhos (e não gordinhos) não resistiram. Vou correr aqui - suspirei.
E se eu morrer? Será que a mãe da minha amiga, será que aquele advogado, será que aquela juíza finalmente vão entender que a vacina podia ter me salvado?
Sobre essa pergunta eu já tive a resposta esta manhã, quando vi comentários de uma dessas pessoas ao noticiário de hoje, que trazia mais um recorde e apontava para a opinião do TCU sobre a gestão da crise. A família toda contaminada, a filha sentindo dor e contaminada pela segunda vez, e a pessoa assim, não reagente.
Não adianta. Minha morte, além de um vexame, como diria Belchior, seria completamente vã. Um risco n’água ao lado de outros 340 mil óbitos, ou mais.
Quarta, com a manutenção de todos os sintomas, eu resolvi ir ao hospital. Agora eu tenho plano de saúde, pelo menos até o contrato se acabar em junho, e eu vou direto naquele da Aldeota – festejei.
Chegando lá de N95, entre esperas, exames e atendimentos, permaneci de 15h à meia-noite, testemunhando pessoas que trabalham sem parar. Muito desse tempo foi numa pequena enfermaria ao lado de vários infectados. Vi pessoas subindo pra UTI, ouvi choros e gritos, soube de óbitos, pensava na minha família.
Num dos intervalos, fui à farmácia fazer dois testes, a pé mesmo, vendo as bonitas janelas da Aldeota, algumas com bandeiras do Brasil. Negativo, o resultado. Grande coisa. Voltei ao hospital.
Minha esposa, sem notícia de mim, às 22h, e aceitei um carregador de bateria de um culto professor, já diagnosticado. Lambuzei-me a mim e ao acessório com o precioso álcool em gel, que a esta altura já era um borrifador de 500ml. Notei que, se as fizesse rir, as pessoas tossiam menos. O tempo passou mais rápido em algum momento breve.
Sou recebido pelo primeiro médico e já não sei dizer se estou ou não com dor de garganta. À ausculta, ele disse que eu tinha secreção na base do pulmão. Determinou a realização de tomografia do tórax e exames de sangue.
Enfim meia-noite. Outro médico, já de posse dos exames, diz que não tenho nada no pulmão e que estou com uma infecção, que não pode ser constatada como Covid-19 a não ser por um exame de laboratório, que ficaria para a manhã seguinte.
É quinta-feira. Diarreia e dor de cabeça. Vou fazer o exame, e o atendente muito simpático e bilíngue diz – espero que tenha sido brincando, meu Deus – que os chineses pegavam nossos dados. E que o resultado podia sair no mesmo dia. Não saiu, mil acessos que fiz.
Alguém no prédio, cochicha, às minhas costas: “O Haroldo com Covid?”. Lembrei das pessoas que pediram para tirar fotos nesses dois dias. Pensei que poderiam ser meus últimos registros. A espera foi lenta. Fui atrás de saber a evolução da doença em amigos que sobreviveram. Li muito. Dormi pouco.
Sexta-feira, 5h. Ainda dor de cabeça. Diarreia não sei ainda. Devo ter acordado antes da bebê. Rodei mil vezes o quarto improvisado, chutei sem querer a garrafa de água de côco, mas deu tempo o chão secar. Memorizei senha e login de tantos acessos e lá pras 8h saiu o resultado.
Não reagente para Covid.
Alvíssaras. É preciso seguir.