Redes sociais: terra de ninguém?

Já passou da hora das redes sociais exigirem CPF (e, vá lá, CNPJ, no caso de empresas) para criação de perfis. A nossa Constituição, a propósito, no art. 5.º, IV, garante a livre manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. A Lei 12.965/14 reitera a liberdade de compartilhar qualquer tipo de pensamento na rede, desde que o usuário se identifique.

Antes que eu seja perguntado, se você se diz “libertário” e acha que essa minha proposta é para restringir a “liberdade” do cidadão, eu informo que me parece correto protegermo-nos de violências e ofensas que, é sabido, acontecem quando garantida está a impunidade e anonimato. E me parece comum garantir a liberdade de criar e participar de redes sociais desde que isso não se torne um mecanismo perfeito de violência à própria liberdade. Mesmo para os que costumam dizer “don’t tread on me”, o raciocínio fecha.

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A lei sempre chega depois para dar cabo de situações indesejadas. Um estado de natureza idealizado é ideia pueril que, nas redes sociais, está até mesmo estimulando suicídios. O cidadão continuará livre até para ocultar sua foto ou seu nome, mas com um CPF associado poderá ser responsabilizado mais facilmente por eventual ilícito. Hoje testemunhamos uma quantidade infinita de chantagens, assédios, ofensas, ataques em bloco e desinformação sanitária – tudo com consequências gravíssimas.

Uma reflexão política

Engana-se aquele que, do ponto de vista da política, entende que apenas bolsonaristas serão atingidos: ora, os próprios bolsonaristas dizem todos os dias que os “esquerdistas” adoram fakenews e que “comunistas” passam o dia ofendendo os cidadãos de bem. Mais um ponto positivo da proposta de legislação, então. A ignorância é ambidestra e, obviamente, anterior a Bolsonaro ou a qualquer outro político. Mas tenho fundadas razões para temer que seja posterior a Bolsonaro também. Explico.

Antes mesmo do atual presidente da República aparecer no CQC ou no Superpop, todo nós conhecíamos alguém autoritário, ou orgulhoso da própria ignorância, ou homofóbico, ou racista, ou crente em teorias da conspiração, dentre outras características que podem ser enquadradas no novo fascismo. 

Só que essas pessoas se envergonhavam solitariamente, às vezes causavam riso, e envergonhavam os parentes apenas nos natais e semanas santas, sem repercussão maior, ignorados pela relevância de todos os assuntos e acontecimentos da vida real, que demandava a nossa atenção de maneira exclusiva.

Que tempo bom! Era quando ninguém perdia seu tempo explicando que a TV Globo não é comunista, por exemplo, ou quando ninguém agia como sommelier de vacinas.

Ocorre que, agora, há viabilidade eleitoral e uma forma de propagar “informação” especial para este público de ignorantes. E, mesmo com a derrota do clã bolsonarista ou qualquer outro resultado eleitoral, persistirá o plexo de características que justificou a escalada extremista: a falta de tempo e disposição, no brasileiro médio, para a consulta de dados; o whatsapp tido e havido como fonte primária; o youtube oferecendo vídeos dentro do viés de confirmação do usuário; a invencível robótica nas redes sociais, estimulada pelo inacabável anonimato, infinita criação de perfis eletrônicos e ataques organizados a quem ousa divergir.

Tudo do mesmo jeito

Mesmo a derrota de Bolsonaro em 2022 sendo, de fato, um pouco mais factível que o impeachment (dado que esta CPI da Covid parece jogo de cena que apenas eleva o passe dos congressistas; dado que os líderes de Senado e Câmara são aliados do presidente; e dado que o centrão não tem a menor vontade de perder a mamata), os derrotados terão à disposição, ainda, as mesmas condições tecnológicas de antanho, e persistirão incultos. Para onde eles irão? Para onde iremos?

É bem previsível o que está por vir. Já foi até antecipada a desculpa de fraude do sistema eleitoral: seria necessário, para a narrativa conspiracionista, o voto impresso, para evitar a derrota de Bolsonaro. À parte do absurdo da afirmação, do fato de que Bolsonaro fez 30 anos da própria carreira de parlamentar sem voto impresso e que este tipo de controle só beneficia milicianos – que, assim, poderão exigir fidelidade em seus bolsões eleitorais -, isso é fundamentalmente mais uma pífia justificativa para manter a chama da extrema direita viva, dentre tantas justificativas outras igualmente frágeis e cômicas.

Em resumo, os que são dados a isso continuarão ofendendo, negando a ciência, história e jornalismo, criando e acreditando em conspirações, porque é a única maneira de existirem como grupo, tão heterogêneos que são em seus preconceitos e concepções. O tio do zap continuará com todas as convicções e meios técnicos de disseminação de antes. E o ovo da serpente continuará sendo chocado.

Um pedido

Exposto isso, é razoável perguntar: como curar essas pessoas? Como curar o debate político brasileiro, que já não era tão prolífico antes de tudo o que está havendo? Como nos proteger a todos? Se a resposta é mais ciência, mais história, mais jornalismo, e menos anonimato, ofensas e impunidade, é necessário seguir denunciando e enfrentando.

Pensem com carinho, então, nessa proposta de lei.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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