O jogador de futebol, Vinícius Júnior, desde que começou a se destacar e chamar a atenção no elenco do Real Madrid, tem sido vítima de várias manifestações de racismo, por parte de torcedores adversários do clube espanhol ou mesmo de torcedores do próprio clube merengue. Ele tem sido costumeiramente hostilizado com gestos de cunho racista, com cantos e xingamentos, nos quais é chamado de macaco ou agredido com o lançamento de bananas ou outros objetos em sua direção.
O caso mais grave foi protagonizado pela torcida do principal rival do Real Madrid na cidade: torcedores do Atlético de Madrid penduraram um boneco na cor negra, vestido com o uniforme usado normalmente pelo atleta brasileiro, suspenso por um laço no pescoço, em um viaduto da capital espanhola, simulando seu enforcamento ou publicamente desejando o seu assassinato.
O pior é que sendo ele um dos principais jogadores do clube não tem recebido a devida solidariedade e as providências por parte da própria diretoria do Real Madrid e nem mesmo seus colegas de equipe, alguns deles negros e brasileiros, não têm saído publicamente em sua defesa.
Por vir tendo uma postura de denúncia pública e de enfrentamento, inclusive durante os jogos, das agressões racistas que lhes são dirigidas, não fugindo do embate com os racistas, levando a paralização das partidas, solicitando dos juízes em campo que tomem providências, chegando a apontar e afrontar os racistas mais exaltados e mais agressivos, ele vem sendo considerado, inclusive por muitos de seus colegas de outros clubes e pela própria Federação Espanhola de Futebol como sendo responsável pelas próprias agressões que recebe.
Veja também
Por não baixar a cabeça, por usar as redes sociais e os meios de comunicação para denunciar o racismo e criticar a conivência da sociedade espanhola e dos órgãos ligados ao futebol com os atos racistas de que é vítima, ele terminou por ser taxado, pelo próprio presidente da La Liga, Javier Tebas Medrano, de ser um provocador, cujo comportamento dentro e fora de campo levaria a exacerbação dos ânimos e a perpetração do que seriam gestos “isolados” de descontentamento em relação ao atleta brasileiro.
No dia 21 de maio último, em jogo no Estádio de Mestalla, na cidade de Valência, contra o time do mesmo nome, diante de uma torcida que gritava quase em uníssono a palavra “mono”, macaco em castelhano, Vinícius Júnior se dirigiu ao árbitro solicitando a paralização da partida, além de se aproximar da arquibancada e confrontar alguns torcedores mais exaltados, apontando para eles e fazendo menção de ir em sua direção.
Nesse momento, ele foi cercado por um grupo de jogadores do Valência e um deles lhe deu uma espécie de chave de pescoço, ao reagir ao gesto de agressão do adversário atingindo seu rosto, terminou expulso da partida pelo juiz principal que, ao ser chamado pelo árbitro do VAR, para que revisse o lance, teve acesso apenas as imagens do revide do jogador brasileiro, com as imagens da agressão do atleta Hugo Duro sendo omitidas pelo árbitro Nacho Iglesias Villanueva, induzindo a erro o árbitro principal da partida De Burgos Bengoetxea. Ou seja, a vítima de um episódio coletivo de agressão racista termina sendo punido, sem que mesmo a imprensa esportiva espanhola demonstrasse nenhuma revolta ou estranhamento com o caso.
Foi preciso que o técnico do Real Madrid, Carlo Ancelotti, ao término da partida, na entrevista coletiva, se rebelasse contra o absurdo que foi a primeira repórter esportiva a lhe inquerir fazer de conta de que nada anormal acontecera na partida e lhe pedisse uma análise do futebol jogado pelo time de que é treinador. Ele se negou a falar de futebol e fez um desabafo de que as agressões racistas a um jovem atleta negro, que só quer jogar futebol e desempenhar bem a sua profissão, continuassem sistematicamente acontecendo sem que nenhuma providência fosse tomada era inaceitável.
O fato de Vinícius Júnior ter dito que a sociedade espanhola era racista, de que no Brasil muitos tenham esquecido que somos um país racista e acusado a Espanha de ser racista, abriu um debate no interior das instituições e na imprensa daquele país. No entanto, não é nenhuma surpresa que a sociedade espanhola, assim como a brasileira, padeça de racismo estrutural. Podemos dizer que a Espanha, que se constituiu como nação a partir da expulsão dos mulçumanos da Península Ibérica, no decorrer do século XII, foi uma das protagonistas na implantação do colonialismo europeu fora do continente e, por conseguinte, naquilo que podemos chamar de invenção das raças.
Foi a partir da chegada de Cristóvão Colombo ao continente americano, em 1492, final do século XV, sob a bandeira espanhola, com o consequente encontro com os povos originários das Américas, que começou a se delinear, na Europa, a ideia da existência de distintas raças humanas e de que elas viviam em estágios civilizacionais distintos. O encontro dos europeus, notadamente daqueles advindos dos reinos pioneiros na chamada expansão marítima europeia, Portugal e Espanha, com os povos tidos como exóticos, selvagens e bárbaros, na América e na África, foi fundamental para o surgimento de um pensamento racialista, que tomava a cor da pele, os traços físicos, as características ditas biológicas, como sendo elementos diferenciadores não só da materialidade mas das dimensões mentais e subjetivas dos povos.
O racismo foi uma invenção do colonialismo europeu e é dele inseparável, pois ele serviu para explicar e legitimar a conquista, a dominação, a exploração e, inclusive, a escravização daqueles povos que passaram a ser nomeados de povos de cor, vistos como inferiores e destinados pela própria natureza e pelo próprio Deus a subordinação e ao serviço da raça superior, civilizada, cristã.
A Espanha, seus homens letrados e suas elites administrativas, seus governantes e agentes da Corte, seus missionários e seus soldados, elaboraram pensamentos raciológicos e racistas e puseram em prática ações e procedimentos apoiados na ideia da raça, utilizando-a para diferenciar as pessoas, distribuí-las através dos cargos e prebendas, dando a elas dadas funções e destinos. A sociedade espanhola moderna se estruturou através do colonialismo, não renegado até hoje (ainda se celebra todos os anos o 12 de outubro, dia da chegada de Colombo as Américas, dia inicial da conquista colonial, como sendo o dia nacional do país) e através do racismo ideológico, político e econômico.
Veja também
A Espanha foi governada, durante grande parte do século XX, entre 1939 e 1975, pelo regime franquista, um regime ditatorial de extrema-direita, de caráter católico, ultranacionalista e, portanto, xenófobo e racista. A sociedade espanhola ainda está profundamente marcada pelo franquismo, como mostra o crescimento da presença da extrema-direita no país, representada pelo partido Vox, que teve expressiva votação nas últimas eleições parlamentares, elegendo 52 parlamentares. Mas mesmo no Partido Popular, o segundo mais votado do país, que defende posições de direita mais moderada, há simpatizantes e defensores do franquismo.
O presidente da Liga Espanhola de Futebol – que organiza o campeonato –, Javier Tebas, que negou haver racismo na sociedade e no futebol espanhol, responsabilizando Vinícius Júnior, pelas agressões racistas que vem recebendo, como advogado, defendeu em 2017, o jogador Roman Zozulya, do Albacete, que foi acusado de ter ligações com grupos paramilitares neonazistas da Ucrânia. Na época, ele chegou a dizer que as posições políticas do jogador deviam ser respeitadas e ameaçou processar por coação os torcedores e dirigentes do Rayo Vallecano, time adversário, que haviam feito a denúncia.
Tebas, que é nascido na Costa Rica e naturalizado espanhol, é filiado ao Vox, partido de extrema-direita, defensor da supremacia branca, com posturas claramente xenófobas, propondo a expulsão de imigrantes e o fechamento das fronteiras para a chegada de pessoas procedentes de outros países. Ele já foi integrante da Fuerza Nova, uma agremiação de viés fascista, nostálgica do franquismo, que atuou no país entre 1976 e 1982.
Portanto, a postura e as falas do jogador negro brasileiro, que está sabendo usar sua fama e sua presença na mídia, para denunciar o racismo estrutural presente na sociedade espanhola, tem incomodado a muitas pessoas, justamente por ele ser um estrangeiro, um negro, pertencente a uma categoria profissional que ainda é vítima de muitos preconceitos, como a de ser ignorantes, limitados intelectualmente, interesseiros, etc.
Vini Jr. tem obrigado a sociedade espanhola a se ver no espelho, a olhar para seu próprio umbigo, à medida que suas atuações dentro e fora de campo têm tido o condão de fazer o racismo eclodir em ações e em discursos, ele tem tornado visível e dizível o que não era visto ou dito. A postura de avestruz de setores como a imprensa, os dirigentes esportivos e os próprios técnicos e jogadores de futebol foi posta em xeque por sua coragem em enfrentar as injúrias e as agressões racistas publicamente, em não transigir e contemporizar com o racismo, reacendendo o debate aqui no seu próprio país, também marcado pelo colonialismo e pelo racismo, que ele inventou e institucionalizou.
Se Portugal e Espanha foram as pontas de lança do colonialismo europeu nas Américas, foram também os que trouxeram o racismo para o nosso continente, que se apoiaram pioneiramente nas teorias e ideias raciais, nas hierarquias e argumentos de cunho raciológicos para distinguir, hierarquizar e discriminar seres humanos, chegando a pôr em dúvida a própria humanidade dos seres com os quais se depararam no Novo Mundo, assim como no continente africano.
A famosa Controvérsia de Valladolid, ocorrida entre os anos de 1550 e 1551, que pôs em campos opostos o frei Bartolomeu de las Casas, defensor da humanidade dos indígenas e crítico da violência com que a colonização espanhola se desenrolava nas Américas e o teólogo dominicano Juan Ginés de Sepúlveda, que defendia a escravização dos indígenas por considera-los seres inferiores, destinados pelo próprio Deus para o serviço dos cristãos, é revelador de como o racismo que grita, hoje, nos estádios de futebol da Espanha, possui uma longa história, em que o colonialismo, a chamada conquista europeia de outras terras e povos, é inseparável da disseminação do preconceito racial, das hierarquias e das subordinações e explorações apoiadas e justificadas pela raça.
Ao não baixar a cabeça, ao não calar a boca, ao não “reconhecer a sua inferioridade”, Vinícius Júnior incomoda, causa escândalo, revolta e violência simbólica que, se não for combatida rigorosamente, pode se transformar em violência sanguinária, pois o colonialismo e o racismo ensinaram e ensinam a odiar o que é diferente e visto como inferior, ensinaram a matar o outro pelo qual não se tem empatia por não considerá-lo da mesma espécie.