Agronegócio: modernidade tecnológica, arcaísmo ideológico

Entre os dias 01 e 05 de maio, realizou-se na cidade de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, a Agrishow, considerada uma das maiores feiras de tecnologia agrícola do Brasil e do mundo, reunindo expositores nacionais e internacionais, apresentando as últimas novidades em maquinário agrícola, sementes, implementos, fertilizantes, defensivos agrícolas, sistemas de irrigação, tecnologia de precisão, etc. O evento, além da exposição de tecnologia agropecuária, contou com a realização de seminários, palestras, workshops com renomados especialistas do setor para discutir temas importantes relacionados ao futuro da agricultura e da pecuária. Nos estandes das empresas os visitantes podiam assistir à demonstração do funcionamento de máquinas e equipamentos recém-lançados no mercado. A feira foi presidida pelo empresário Maurílio Biagi Filho, herdeiro do clã Biagi, grandes produtores de cana-de-açúcar e usineiros da região noroeste do estado de São Paulo.

Esse ano, no entanto, a realização da feira esteve envolvida em uma intensa polêmica de caráter político. O vice-presidente da Associação Brasileira de Agronegócios (Abag), Francisco Matturo, diretor comercial na área de equipamentos e implementos agrícolas, um dos organizadores da feira, resolveu convidar o Ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, e, ao mesmo tempo convidar o ex-presidente da República Jair Bolsonaro, recém-chegado dos Estados Unidos, que teria assim a sua primeira oportunidade de fazer uma aparição pública e um discurso para uma plateia extremamente simpática a ele, para que participassem da cerimônia de abertura do evento, justamente no dia 01 de maio, dia do trabalhador.

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Diante do convite a Bolsonaro, o Ministro da Agricultura considerou que, ao fazer esse gesto, os organizadores estavam tomando uma posição política de hostilidade ao governo Lula, de clara reafirmação da posição bolsonarista do setor, e resolveu não comparecer a solenidade de abertura, afirmando que a atitude dos organizadores configurava um “desconvite” e uma descortesia. Teria sido sugerido ao Ministro que alterasse sua agenda, para que sua presença não coincidisse com a do ex-presidente, que possivelmente transformaria a abertura do evento em seu primeiro comício após a fuga para o exterior.

Diante da intensa repercussão negativa terminou por se cancelar a cerimônia de abertura, mas a hostilidade do setor em relação ao presidente eleito e sua adesão a posturas fascistas ficaram patentes, já que a feira é organizada pelas principais entidades do setor. Além da Abag são responsáveis pela realização da feira: a Associação de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), a Associação Nacional para a Difusão de Adubos (Anda), a Sociedade Rural Brasileira (SRB) e a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de São Paulo (Faesp).

Esse episódio envolvendo a Agrishow escancara o que parece ser uma grande contradição: o agronegócio brasileiro, ao mesmo tempo, que é um dos mais modernos tecnologicamente do mundo, é um setor de ponta do ponto de vista do acompanhamento e incorporação das mais recentes novidades tecnológicas, é um setor composto por pessoas com mentalidades e subjetividades marcadas pelo tradicionalismo, pelo arcaísmo, pelo reacionarismo.

O caso do agronegócio brasileiro deixa claro que modernização não é e nunca foi a mesma coisa que modernidade. A modernização se dá no campo da materialidade, da empiricidade, com a adoção de aparelhos e aparatos tecnologicamente mais avançados, o que não implica a modernidade, que requer mudança de valores, transformações de ordem conceitual, mental, portanto, subjetivas, de visões de mundo, de sensibilidades, mudanças de ordem cultural, de maneiras de pensar, sentir e imaginar.

É no meio rural brasileiro que ainda se faz sentir com mais força a permanência de traços da colonialidade e do regime escravocrata. Mesmo os inúmeros empresários rurais que não descendem das tradicionais famílias detentoras do monopólio da terra, de latifúndios que vêm passando pelas mãos de gerações das mesmas famílias, desde o período colonial, mesmo aqueles que são descendentes de imigrantes estrangeiros, que muitas vezes aqui chegaram sem nada, assimilaram a mentalidade senhorial e escravocrata com seus vizinhos e parceiros das atividades agrícolas e pecuária. Como sabemos é no setor do agronegócio que ocorrem a maior número de casos de ocorrências de trabalho análogo a escravização.

Só nos primeiros quatro meses do governo Lula, 1.201 pessoas foram resgatas de situações de trabalho análogas a escravidão. Um dos motivos que leva os empresários do agronegócio a ter verdadeiro ódio ao Partido dos Trabalhadores e a seus governos, é a fato de que neles se acentuam a fiscalização do cumprimento da legislação trabalhista. Para felicidade do empresariado em geral, e dos empresários do agro em particular, já que cometem muito mais irregularidades quando se trata de cumprirem as leis trabalhistas, o governo Bolsonaro extinguiu o Ministério do Trabalho, sucateou e paralisou o setor de fiscalização, além de hostilizar a própria justiça do trabalho. Quando uma senadora gaúcha, ligada ao setor, comemorou que membros da caravana de Lula foram recebidos, no Rio Grande do Sul, a base de chibatadas de relho, fica patente como a nostalgia do senhor de escravo ainda reina entre empresários do setor.

Ao mesmo tempo que se utilizam de tecnologias modernas, muitos dos que se dedicam ao agronegócio utilizam esses aparatos modernos para derrubar as florestas, para invadir e se apossar de terras indígenas, de comunidades tradicionais, de terras devolutas dos estados e da União. A tecnologia a serviço de uma visão predatória, completamente desligada de qualquer responsabilidade social e ambiental. A questão ambiental é outro contencioso do setor com os governos do Partido dos Trabalhadores.

Os compromissos assumidos internacionalmente pelo Brasil no que tange a mitigação dos fatores causadores do aquecimento global, das mudanças climáticas, o compromisso de buscar frear o desmatamento da Amazônia e a degradação de todos os nossos biomas, nos governos petistas, desagradavam fortemente setores ligados ao agronegócio que lucram com a degradação ambiental, que têm lucro mais fácil não observando a legislação ambiental. As atividades agrícolas e pecuárias já degradaram mais de trinta milhões de hectares de terras, que precisam ser recuperadas.

Como vem afirmando o governo, com o uso dessas terras se pode duplicar a produção agrícola e pecuária sem que seja preciso derrubar uma só árvore. Os agentes do setor do agronegócio optaram, em sua maioria, - pois como em todo caso há exceções - pelo bolsonarismo, porque o governo Bolsonaro, nas palavras de seu ministro de meio-ambiente, deixou passar a boiada, sucateando os órgãos de fiscalização ambiental, fechando os olhos, quando não incentivando o crime ambiental, práticas ilícitas como garimpo e desmatamento ilegais, liberando o uso indiscriminado de agrotóxicos nocivos ao meio-ambiente.

Outro contencioso do agronegócio com os governos de esquerda é a questão indígena e dos povos tradicionais, como os quilombolas. Herdeiros de práticas seculares como a conquista de terras mediante a matança de indígenas e quilombolas, a limpeza da terra para a conquista e posterior registro através da violência, tomando as terras de posseiros e pequenos proprietários, dos vizinhos à bala, muitos dos empresários do agronegócio conjugam a modernidade reluzente de seus escritórios, de seus carrões e jatinhos, com a secular prática da jagunçagem, do uso de matadores para perpetrar a invasão de terras e se livrar, muitas vezes, de incomodas lideranças camponesas. Como registram os números da Comissão Pastoral da Terra, só no ano passado 47 lideranças camponesas foram assassinadas, um aumento de cerca de 35% em relação ao ano anterior. A política armamentista do governo Bolsonaro, o liberou geral para a compra de armas, é outro motivo que faz com que a gente do agro seja apaixonada pelo capitão.

A pretexto de se armarem para defenderem suas terras de possíveis invasões do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) – um dos motivos do ódio dos ruralistas ao PT seria o apoio que seus governos deram a esse movimento – muitos agentes do agro usam as armas para tomar e se apossar de terras indígenas e de comunidades tradicionais. A destruição completa da política indigenista, da política de demarcação de terras pertencentes aos povos originários e tradicionais, a permissão para a invasão dos territórios indígenas e para a exploração de suas riquezas, que quase se transformou em lei, é um dos motivos do agronegócio ter aderido ao fascismo, ter financiado boa parte das manifestações golpistas e a tentativa de golpe do 8 de janeiro. Como vemos, o moderno setor do agronegócio quando se trata de questões civilizacionais, de civilidade, de observância da lei e dos direitos humanos parece ainda estar mergulhado no atraso e nas trevas.

A questão da reforma agrária, da redistribuição das terras, tremendamente concentradas nas mãos de poucos, com muitas delas sequer cumprindo a exigência constitucional de realizar a sua finalidade social, a defesa do direito de propriedade como um direito sem limites e sem ônus, é um dos motivos que explica por que o moderno setor do agronegócio é reacionário do ponto de vista político e ideológico. Num país continental como o Brasil, com suas terras quase todas agricultáveis, a existência de milhares de pessoas vagando pelo campo em busca de um pedaço de terra para viver e produzir já devia ser em si mesmo um escândalo. Mas o escândalo se torna maior quando se constata que muitos latifúndios, imensas extensões de terra, são improdutivas, sendo mantidas apenas como reserva de valor. A taxação baixíssima e não progressiva da propriedade da terra (o Imposto Territorial Rural cobra taxas ridículas), se constitui num privilégio que penaliza a maior parte da sociedade brasileira. Se as terras improdutivas fossem taxadas com alíquotas maiores e se fossem desapropriadas para fim de reforma agrária não haveria tanta miséria no campo, tanta migração campo-cidade e os alimentos seriam mais baratos, já que o moderno agronegócio produz preferencialmente para a exportação.

A visão arcaica acerca da propriedade mostra como em termos de pensamento o agronegócio está anos-luz dos avanços tecnológicos que utiliza. Avanço que foi conseguido, em muitos setores, graças aos investimentos públicos em ciência e tecnologia, através da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, que foi sucateada no governo Bolsonaro, com sua visão anticiência, com seu preconceito em relação aos cientistas e intelectuais. As lideranças do agronegócio não defenderam sequer o órgão que mais os beneficiou tecnologicamente, se mostrando tão retrógrados quanto o seu mito. O terno moderninho de muitos empresários do agronegócio esconde no bolso, ainda, o chicote senhorial.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

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