O clima, sujeito a periódicas estiagens, a presença marcante do sol e do calor sempre estiveram, para o bem ou para o mal, atrelados ao imaginário em torno da região Nordeste. Quando esse recorte regional surgiu, lá no início do século XX, o fenômeno das secas e todas as suas consequências sociais dolorosas, foram fundamentais na demarcação da área que receberia o nome de Nordeste e para a sua separação em relação ao antigo Norte, que ia da Bahia ao Amazonas. Usada como argumento político, explorada como tema capaz de carrear recursos, cargos públicos, obras, sinecuras de todos os tipos para as elites nordestinas que, tendo perdido o controle da economia e da política nacionais, ao longo do século XIX, optaram por viver da utilização da seca e das cenas de miséria extrema que elas acarretavam, ela passou a estar associada a imagem da região e a praticamente defini-la.
Foi no âmbito da Inspetoria de Obras Contra as Secas (IFOCS), em decreto assinado pelo presidente Epitácio Pessoa, no ano de 1919, instituindo um programa de obras contra as secas, que o conceito Nordeste emergiu, ganhou publicidade e se tornou uma verdadeira trincheira para que as decadentes elites agrárias vinculadas a atividades como a produção canavieira, a produção do algodão e a pecuária, defendessem seus privilégios, ameaçados pelo desenvolvimento da economia capitalista, da vida urbana e industrial, pelo surgimento de novos grupos sociais, como a burguesia urbano-industrial, uma classe média e a classe operária.
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No entanto, já nos anos noventa do século passado, com a criação do Programa de Desenvolvimento do Turismo no Nordeste, no ano de 1992 (o PRODETUR/NE I), começa-se a explorar o que seriam as potencialidades econômicas oferecidas por uma região onde o sol quase nunca desaparece, onde os períodos de chuvas regulares estão concentrados em poucos meses, onde o calor, as belezas naturais, notadamente do litoral atlântico, e a própria oferta de mão-de-obra barata, prometiam fazer do turismo de veraneio uma saída para a estagnação da economia regional. Elaborado no âmbito do Ministério dos Esportes e Turismo, contava com a parceria do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), do Banco do Nordeste e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e visava dotar da região de uma adequada infraestrutura voltada para atender o setor turístico, financiando a construção de uma rede hoteleira, financiando a melhoria dos acessos rodoviários a determinados destinos turísticos, qualificando o que seriam as atrações turísticas locais e investindo na qualificação da mão-de-obra local para atuar nessa área.
Pela primeira vez, houve um investimento por parte das administrações públicas estaduais e municipais e também por parte da iniciativa privada em campanhas de comunicação e marketing, feitas através de órgão de imprensa de alcance nacional como: revistas semanais, redes de televisão e jornais de circulação nacional, no sentido de modificar o imaginário em torno da região. O sol, comumente mostrado em textos de caráter literário, artístico ou político, advindos de intelectuais e artistas da região, como uma espécie de agente maléfico, a perseguir os passos de retirantes famintos, esqueléticos, dessedentados, passou a ser mostrado como fazendo parte de cenários paradisíacos, compostos de céus azuis, luminosos e ensolarados, montanhas verdes e praias espumantes e aprazíveis. O calor, que nas representações clássicas sobre a região, prostrava os personagens, os depauperava, deixando-os amolecidos, com pouca capacidade de raciocínio, levando-os a exaustão; que gretava toda a caatinga e como uma fornalha reduzia a vegetação a cinzas, agora era apresentado como uma vantagem comparativa da região, que ofereceria permanentes opções de lazer por não ser vítima de períodos de frio e de baixas temperaturas.
No entanto, essa propaganda desse Nordeste da beira-mar, da água de coco, do turismo e do lazer, que visava atrair, notadamente, as pessoas em períodos de férias e buscando diversão, tanto de outras regiões do país, quanto de outros países, acabou por somar aos estereótipos com que, normalmente, essa área do país é vista e dita, a de ser uma área de preguiça e vagabundagem, de gente que gosta apenas de tocar tambor na praia, deitar-se na rede, se esticar nas espreguiçadeiras e nas cadeiras de balanço, de gozar da sombra e da água fresca. O Nordeste seria terra de gente festiva, alegre, pouco afeita ao trabalho, sustentada pelos impostos pagos pelo restante da população do país, transferidos pelas benesses do Estado nacional.
O financiamento de novelas da Rede Globo de Televisão, como Tropicaliente, pelo governo cearense, visando vender a imagem da região como um paraíso tropical se, por um lado, buscou reconfigurar positivamente elementos comumente associados a imagem da região e mais abordados na chave do drama e da tragédia, como os elementos que comporiam a natureza regional, seu clima, sua vegetação, por outro lado, além de atualizar estereótipos como o da preguiça e do não trabalho, reforçou as imagens ligadas a produção cultural nordestina, a chamada cultura nordestina ou regional, marcada por uma visão folclorizante e tradicionalista.
A oferta de produtos destinados a compra pelos turistas reforçou a ligação entre cultura nordestina e práticas artesanais, mesmo que os pretensos artesanatos fossem produzidos em série, em fábricas de pequeno porte, localizadas nas periferias das cidades. As feiras de artesanato proliferaram na região, ofertando produtos pretensamente tradicionais para turistas ver e comprar. Com o tempo o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) passou a investir na qualificação dessa produção artesanal, em sua mercantilização e adequação até do ponto de vista do designe e da forma. As festas e manifestações ditas folclóricas, os grupos folclóricos montados para turistas ver, se espalharam pela região, com destaque para as capitais e cidades de porte médio. As festas juninas e as vaquejadas, transformadas em grandes espetáculos urbanos e midiáticos, apoiavam-se, e ainda se apoiam, no discurso da tradição e da regionalidade, ao mesmo tempo que simulam uma ruralidade fake.
Creio que hoje abre-se uma nova oportunidade não apenas no que toca a mudança da estrutura econômica da região (vejamos se as elites regionais deixarão isso acontecer, pois sempre abortaram mudanças econômicas mais profundas para não perderem a hegemonia e o controle sobre esse espaço econômico), como também de rompermos com esse imaginário em torno da natureza regional, que por um lado nos condenaria a vivenciamos tragédias naturais cíclicas, que seriam responsáveis pelo atraso e miséria regionais e de sua população e por outro lado incentivaria o não trabalho, a vida fácil, afastando as camadas populares da produção e permitindo a existência de estilos de vida caracterizados pelo ócio e não pelo negócio.
O Nordeste está caminhando para desempenhar um papel central na chamada transição energética e na mudança de modelo de desenvolvimento, um desenvolvimento que privilegie a sustentabilidade ambiental. O sol e o clima regionais, que sempre foram vistos como a motivação de muitos de seus problemas, parece caminhar agora para significar a abertura de possibilidades, parece dar a área um handicap favorável, tanto em termos comparativos com outras áreas do país, quanto em relação a todo o norte global, onde ficam os países de clima subtropical.
A necessidade de geração de energias limpas, de encontrar fontes alternativas às energias fósseis, as fontes de energia responsáveis pela alta emissão de carbono, dos gases de efeito estufa na atmosfera, coloca o Nordeste numa posição privilegiada e abre para esse espaço o que pode ser uma nova oportunidade de desenvolvimento e crescimento econômico, que reduzam as imensas desigualdades regionais que ainda são a realidade brasileira. De espaço da tradição, de espaço folclórico, passadista, o Nordeste pode assumir uma posição de vanguarda, pode passar a ser o espaço onde tecnologias de ponta são testadas e utilizadas.
Uma região caracterizada por uma insolação permanente e de grande intensidade, dada a proximidade com a zona equatorial do planeta e a baixa pluviosidade e umidade, de boa parte de suas áreas, notadamente no semiárido, faz da geração de energia solar uma alternativa econômica para a população local, notadamente para aqueles que são proprietários de terras (a concentração fundiária que caracteriza a região pode, mais uma vez, dificultar que os dividendos produzidos pelos parques de energia solar beneficiem mais do que a sua diminuta elite territorial).
Por ser uma área onde a presença de fortes ventos, notadamente no litoral e zonas próximas ao mar (todos os estados da região tem acesso a costa atlântica) faz da produção da energia eólica, outra alternativa de valorização de áreas de terras degradadas e de baixa produtividade (embora deva se discutir o impacto ambiental desses empreendimentos e como eles podem vir a beneficiar toda a sociedade e não apenas as empresas e os donos de terras), além de que a chamada produção offshore, ou seja, a instalação de parques de produção de energia eólica em plataformas em alto mar, pode se transformar numa grande alternativa econômica para a região. O mesmo pode ocorrer com a produção do chamado hidrogênio verde, que é fruto do processo de separação do hidrogênio da água por meio da eletrólise, usando outras fontes de energia limpa, como as energias eólica e solar. As moléculas de hidrogênio, uma vez separadas do oxigênio que compõem a água, poderão ser usadas para mover desde plantas industriais e automóveis, até aviões e navios.
O Nordeste, que sempre foi tomado como caso típico de subdesenvolvimento, de economia estagnada e arcaica, uma região considerada problema, desde a década de cinquenta do século passado, pode vir a se tornar a área de ponta, a região mais dinâmica na implementação desse novo modelo de desenvolvimento, baseado em produção de energias limpas e renováveis. O sol, o calor, o clima semiárido que, durante muito tempo pareciam ser a maldição regional, a sentença divina de um destino de atraso e subordinação, pode agora ser o que permitirá que esse espaço vivencie um novo surto de desenvolvimento econômico. Resta saber a quem servirá esse desenvolvimento, se ele será apropriado pelos de sempre, se ele beneficiará apenas uma parcela diminuta da população, o que, no longo prazo, vai se mostrar mais uma vez como não sendo desenvolvimento.
É preciso que o desenvolvimento econômico que possa advir das condições favoráveis que a região começa a oferecer para a implantação de novas modalidades de produção de energia possa significar, também, desenvolvimento social, com uma partição bem mais justa de seus benefícios. Também é preciso uma ampla participação e fiscalização da sociedade civil para que empreendimentos que se justificam e se legitimam se apresentando como soluções para problemas ambientais não terminem por se constituir em mais um capítulo nas práticas abusivas e predatórias que os interesses dos capitalistas costumam significar para o meio ambiente. Se mais uma vez se colocar a produção de lucro acima da sustentabilidade ambiental, esses empreendimentos visando a produção de energia limpa da emissão de carbono, podem acabar resultando em poluição sonora, visual, em ameaças para a fauna local, em exploração da mão-de-obra local, sem distribuição de renda e riqueza.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.