Torto Arado é literatura regionalista?

Legenda: Torto Arado é um livro vencedor de prêmios como Oceanos e Jabuti
Foto: Divulgação

O romance Torto Arado, do escritor baiano, nascido em Salvador, Itamar Vieira Junior, vencedor de vários prêmios literários (Leya, Oceanos, Jabuti), é a obra literária mais lida no país nos últimos tempos. Geógrafo e doutor em estudos étnicos pela Universidade Federal da Bahia, Itamar Vieira Junior constrói uma narrativa poderosa em torno de uma temática política das mais importantes, no momento: a questão do direito à fala, a questão de quem pode falar, quem pode narrar suas memórias e sua própria história.

Nela se articulam o silêncio imposto às mulheres pelo patriarcado, pelo sexismo e misoginia, com o silêncio em torno das memórias e da história dos negros e negras, dos descendentes dos escravizados. O silêncio em torno da violência das relações de gênero e das relações étnico-raciais no país. O silêncio em torno dos corpos e desejos femininos, dos corpos e desejos dos afrodescendentes em nosso país.

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Ao perder, significativamente, a língua, em um acidente envolvendo uma misteriosa faca guardada pela avó, vestígio e signo de violências passadas e silenciadas, uma das duas irmãs que protagonizam a trama se vê também condenada ao silêncio, tendo que falar através da voz da outra irmã, com quem desenvolve uma relação de quase simbiose.

Eis que em várias entrevistas, o autor é instado a responder se o seu romance representaria um renascimento do regionalismo na literatura brasileira. Em críticas literárias e até em trabalhos acadêmicos o seu livro começa a ser enquadrado no que seria um regionalismo contemporâneo ou no que seria um neoregionalismo.

O que faz com que uma obra que trata de questões tão universais e, ao mesmo tempo, tão brasileiras, como a exploração social, o trauma familiar, as hierarquias e conflitos sociais, o racismo, a herança da escravidão, a violência de gênero, a problemática da memória e sua dimensão política, a questão do silenciamento e do esquecimento dos sofrimentos das carnes e dos corpos daqueles considerados como não importantes para a história, o machismo, o sexismo, a força do desejo, a sororidade e o poder de aliança das mulheres, seja atirada para a gaveta classificatória do regional? Qual o significado que isso tem e quais as consequências políticas daí advindas?

Logo no texto da orelha do livro surgem elementos que, comumente, servem para caracterizar uma obra como regionalista: a história se passa “nas profundezas do sertão baiano”, envolve “filhas de humildes trabalhadores rurais descendentes de escravos”, as personagens crescem entre a “rotina do campo, as tradições religiosas afro-brasileiras – com suas velas, incensos e ladainhas imemoriais – e a absorvente vida familiar”, numa “história de vida e morte, de combate e redenção”.

Mas não há dúvida de que o elemento que é decisivo para a colocação dessa obra no campo do regionalismo é o fato de ser escrito por autor baiano e a obra se passar no sertão nordestino.

Se a trama se passasse numa pequena cidade paulista, nas profundezas do sertão carioca, dificilmente ela receberia o epíteto de literatura regionalista, ela seria classificada como uma obra de literatura nacional, de literatura brasileira. A gaveta classificatória de literatura regionalista, como dizia o mais canônico autor da crítica literária brasileira, Antônio Cândido, está reservada para a literatura que se produz nos espaços economicamente subalternos do país.

E eu completaria, nos espaços também politicamente subalternos e vistos como subalternos do ponto de vista cultural e artístico. Muitas vezes foram e são as próprias elites letradas, quando não os próprios autores, oriundos desses espaços vistos como periféricos (como o Norte, o Nordeste, o Rio Grande do Sul), que reivindicam e assumem esse lugar do regional, assumindo, assim, muitas vezes sem se darem conta, a própria subalternidade e menoridade da literatura que fazem.

Ao contrário do que faz parecer, parte da crítica literária, que fica buscando a pretensa regionalidade do texto nos elementos internos à obra, o que é decisivo para a classificação de uma dada obra como regional, nacional ou universal, se passa, sobretudo, fora do texto: são as relações geopolíticas, são as hierarquias de poder entre os espaços, entre as nações e regiões, entre os continentes, que definem esses lugares centrais ou periféricos para um texto ocupar.

O crítico literário Franco Moretti, mostra em seu livro Atlas do romance europeu (1800-1900), que todos os romances de Jane Austin se passam numa região muito bem delimitada do Sul da Inglaterra, uma região rural, muito marcada ainda por traços feudais, e, no entanto, suas obras são consideradas universais, nunca regionais.

Toda Comédia Humana, de Balzac, se passa na cidade de Paris, e nunca se imaginou classificá-la de literatura local ou regional, o livro de literatura nacional francesa veio a se tornar literatura universal.

O curioso é que Torto Arado está sofrendo as consequências de uma das temáticas que levanta: quem tem o poder de falar? Quem tem o poder de nomear e classificar? Qual fala é legítima e autorizada para dizer qual a verdade do outro? Os autores nordestinos e suas obras, mesmo que falem de uma gente desterritorializada, que vaga pelo país e pelo mundo, que vive em grandes metrópoles, que ligam o local ao universal, que são seres em trânsito em todos os aspectos, se veem instados e, muitas vezes, assumem esse lugar de escritores de literatura regional.

Tratam de questões nacionais e universais, mas como nasceram no e escrevem sobre o Nordeste, sobre o sertão, sobre personagens sertanejas (como se só existisse sertões e sertanejos no Nordeste, sinonímia fruto da operação de captura desses conceitos feita pelo discurso regionalista nordestino), são convocados por críticos, acadêmicos, jornalistas das regiões ditas centrais do país, que nem se consideram habitantes de uma região, a ser regionalistas.

É como se escrever e falar de São Paulo e Rio de Janeiro fosse escrever e falar a partir da nação (memória ainda circulante da Corte e sua centralidade, somada a centralidade da “locomotiva do país”, imagem construída pelo regionalismo paulista que se nega como regionalismo e se apresenta hora como nacionalismo, hora como cosmopolitismo).

O movimento modernista de 1922, um acontecimento regional, se nomeou e se fez nacional e até cosmopolita, enquanto os modernismos surgidos em outros estados ou se nomeavam como regionalismo (como aconteceu com o movimento encabeçado por Gilberto Freyre, no Recife), ou se venderam como extensão do movimento paulista.

Por que é importante que Itamar Vieira Junior, e os escritores nordestinos, se recusem a ocupar esse lugar de escritores regionalistas ou regionais?

Porque essa classificação, essa atribuição desse lugar guarda claramente um sentido político, há nela uma artimanha política, nem sempre consciente por parte de quem a faz, qual seja, a de subalternizar essa produção, de deslocá-la da centralidade do nacional para o periférico e hierarquicamente menor do regional.

Itamar Vieira Junior
Legenda: Itamar Vieira Junior, autor de Torto Arado
Foto: Divulgação

Como os falantes autorizados pelo centro distribuidor de sentidos no País, a grande mídia oligopolista concentrada em São Paulo e Rio de Janeiro, as grandes editoras e seus prêmios literários, a crítica acadêmica e universitária, lidam com a irrupção desse acontecimento, trazido pela temática do livro, pela origem étnico-racial do autor, pelo seu lugar espacial de escritura e formação (dada crítica acadêmica desmaterializa até o autor, trata do texto como se não existisse um corpo negro, masculino, baiano, com formação universitária, jovem, que o escreveu, na sua origem), que é Torto Arado? O atirando para esse lugar comum e subalternizante do regional, assim se doma o acontecimento, a ruptura, a novidade que ele significa, o filiando e reduzindo a uma pretensa tradição literária que vem desde os românticos.

Sua diferença é subordinada a uma identidade, a uma semelhança porque o livro guarda traços de proximidade com livros anteriores ditos regionalistas. Mas ele guarda tantos traços divergentes, por que se enfatiza e se vê apenas os aspectos de proximidade?

O olhar seleciona e vê, em grande medida, o que procura e o que quer ver. Toda literatura parte de um local. Mesmo a que se diz universal ou nacional é fruto de um local universalizado ou nacionalizado. Façamos cada vez mais literatura sobre o sertão e o Nordeste, mas apenas literatura, sem essas qualificações e classificações redutoras e subalternizantes. Isso é um gesto político.