Quando a política se transforma em espetáculo de bufonaria

Com a centralidade dos meios de comunicação, notadamente dos meios de comunicação centrados na imagem, na vida pública e na atividade política, a análise feita pelo militante político do maio de 1968, na França, pelo escritor e militante da Internacional Situacionista e Internacional Letrista - duas organizações políticas marxistas que lideraram aquele levante político -, Guy Debord, de que estaríamos vivendo a passagem para a sociedade do espetáculo, parece ter se tornado bastante acertada.

A eleição presidencial norte-americana, realizada no ano de 1960, que confrontou o candidato do Partido Republicano, Richard Nixon e o candidato do Partido Democrata, John Fitzgerald Kennedy, teria sido o ponto de virada, um marco na importância cada vez maior da performance dos candidatos frente aos meios de comunicação para o desempenho eleitoral. Aquela campanha inaugurou o decisivo debate final entre os oponentes, transmitido em cadeia nacional de redes de televisão. As candidaturas passaram a lançar mão de estratégias de marketing, de propaganda, centradas na produção visual e midiática de uma persona, de um personagem, que não necessariamente tem apoio no que é o candidato em sua materialidade real e em sua plataforma verdadeira.

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Em nossos dias, com o advento das redes sociais, das plataformas digitais, esse poder de espetacularização e de fabricação da imagem se tornou o fator decisivo na vida pública e na atividade política. Muitos agentes políticos tratam de construir um personagem que, como exigem as redes sociais, deve ser singular, diferente, estranho e até bizarro. Quando o chamar atenção, a qualquer custo, o se destacar de qualquer maneira, quando construir uma marca visual, uma espécie de avatar que carreie as atenções, que capture de imediato a atenção de um eleitor, que apenas está ávido por uma sucessão de imagens e informações a mais rápida possível, a centralidade da atividade política se desloca do discurso, do debate de ideias, da discussão de propostas, para a elaboração de personagens capazes de galvanizar a atenção de alguém no átimo de um segundo. O modelo do personagem de Instagram, do personagem do Tik Tok chega a vida política e eleitoral.

Quando o debate político deve obedecer ao modelo de poucos caracteres da plataforma X, reduz-se a política ao slogan, o que sempre fez parte dela, mas não era a sua parte mais importante, como se tornou agora. A própria estratégia da lacração, que serve para alguém conseguir visualizações nas redes sociais, se apossou da atividade política. Ao invés de politizar a população tendemos a ter uma atividade política que despolitiza, pois transforma o exercício da política em mera performance sem o necessário conteúdo. E, o mais grave, a atividade política perde a sua dimensão crítica, contestadora, para tornar-se quase que mera diversão, mera distração, ampliando, ao invés de combater, a alienação social, fazendo, cada vez mais, com que os seguidores de dadas correntes políticas vivam em realidades paralelas, perdidos em meio a bolhas de realidade, fabricadas pelo discurso insistente e incessante das redes sociais e das mídias digitais.

Esse é um ambiente político favorável ao crescimento da direita e da extrema-direita, cuja atuação política não está interessada na politização ou na conscientização da população. A extrema-direita, o fascismo, quer que seu ideário chegue até as pessoas, não importando se isso implique o uso da mitificação, da mistificação, da mentira, da fake news. É preciso recordar que foram os regimes totalitários, surgidos no início do século XX, tanto aqueles de extrema-direita, como o fascismo e o nazismo, quanto aquele de extrema-esquerda, o bolchevismo, que apoiaram o exercício da política na montagem de verdadeiras máquinas de propaganda nas quais, como dizia o ministro da propaganda do regime hitlerista, Joseph Goebbels, uma mentira repetida muitas vezes torna-se verdade. O culto a personalidade dos líderes, com a construção pública de uma imagem do dirigente, com sua onipresença em todos os espaços, através de estátuas, fotografias, cartazes, outdoors, através de suas aparições espetaculares em cerimônias públicas, adredemente planejadas, fazia parte do exercício da atividade política numa sociedade de massas, numa sociedade onde as populações urbanas, concentradas em grandes metrópoles, passaram a ter um papel decisivo nas decisões de caráter eleitoral.

Mas, creio que se Debord, detectou nos anos sessenta, do século passado, o que ele chamou de emergência da sociedade do espetáculo, a dimensão espetacular da política, como o que ocorreu nos regimes totalitários do início e meados do século XX, data de períodos muito anteriores. Quando vejo a atuação de vários parlamentares da extrema-direita no Congresso Nacional, como historiador não posso deixar de lembrar de um personagem marcante da vida nas Cortes, do período de domínio e predominância das monarquias absolutistas, na Europa, que me parece ser um capitulo de destaque quando se trata de abordar a historicidade da dimensão teatral e espetacular da vida pública e da atividade política: o bobo da corte.

Diante de uma vida política centrada completamente na figura do monarca, que deveria galvanizar e despertar todas as atenções, só esse personagem podia ter destaque nos salões, quase tanto quanto ele, assumindo e interpretando o lugar de seu antagonista. O bobo da corte, o típico bufão, era um funcionário da monarquia destinado a entreter o rei e a rainha, fazê-los sair do tédio de uma vida de ócio e de fausto. Muitas vezes era a única pessoa capaz de criticar a monarquia e de expor o caráter farsesco e burlesco da vida na Corte, a dimensão farsesca e risível da atividade política. O bufão era um personagem que já existia em muitas cidades e cortes medievais, ele seria uma espécie de palhaço, cujas performances e aparecimentos espetaculares nas praças ou nos salões exploravam a estética do grotesco. Ele deveria se comportar de modo ridículo, bizarro, fora do comum, devendo atuar de forma cômica, muitas vezes se tornando grosseiro, inconveniente, inoportuno, indelicado, gerando constrangimento e, por vezes, indignação e revolta.

Creio que a espetacularização atual da política, a necessidade de se fazer notar a qualquer custo, mesmo quando não se tem nada a dizer, mesmo quando se foi eleito parlamentar sem ter muito claro o que é um parlamento, o que é ser um representante popular, qual o papel que devem desempenhar naquela arena pública, leva ao surgimento do que eu chamaria do bufão político. Para muitos dos parlamentares eleitos na esteira do bolsonarismo, dada a indigência das ideias e das propostas, a falta do mínimo preparo para exercer a atividade parlamentar, o que importa é aparecer de qualquer maneira, é trazer para a atividade de deputado e senador a lógica e o método da lacração que os fizeram ter destaque nas redes sociais e que os levaram a se eleger.

Ser bizarro, ser estranho, ser grosseiro, ser indelicado, ser insuportável, fazer das sessões das comissões e de qualquer reunião do Parlamento um palco para o desempenho do papel de bufão, que escolheram encarnar, é a estratégia adotada por uma bancada ignorante, desinformada, iletrada, que apenas sabe repetir chavões reacionários, trechos descontextualizados da Bíblia, mentiras e agressões aos colegas, quando não agridem o idioma e a lógica mais comezinha.

O espetáculo que vimos essa semana, quando o deputado Abílio Brunini (PL-MT), pretendeu impedir sozinho a realização de uma manifestação de solidariedade ao povo palestino, postando seu corpanzil na frente mesa, dizendo que ele ia impedir que o evento ocorresse, exemplifica bem o que tem sido essa transformação da vida pública e da atividade política em espetáculo de bufonaria.

Aliás, esse deputado que, segundo institutos de pesquisas eleitorais, lidera as intenções de votos para se tornar prefeito de Cuiabá, poderá atingir seus objetivos à medida que escolheu, como única forma de não ser uma figura apagada e irrelevante no Parlamento - dado que quando abre a boca é para se comportar como um adolescente mal educado, para disparar gracinhas machistas e misóginas a suas colegas mulheres ou homofóbicas a seus colegas homossexuais, para ter atitudes insultuosas em relação as suas colegas transexuais -, foi a de se destacar através da bufonaria, de atuar como se fosse um bobo da corte, fazendo atuações pretensamente graciosas, soltando gracinhas ou, truculentamente, como fez na última semana, tentando impedir o acontecimento de votações, de sessões das comissões, através do uso da força física de seu corpo avantajado e da estratégia do tumulto, da gritaria, interrompendo as falas dos/das colegas, fazendo falas paralelas aquela dos/das colegas.

Para ter destaque, apesar de ser por décadas um parlamentar do baixo clero, que nunca se dava ao trabalho de apresentar proposituras - e nas poucas vezes que o fez não foram aprovadas, dadas a bizarrice das propostas -, apesar de subir poucas vezes a tribuna e quando o fazia era para proferir discursos agressivos e sem nenhuma relevância, Jair Bolsonaro conseguiu se tornar uma figura conhecida e destacada na política brasileira assumindo o papel de bufão da extrema-direita, sendo grosseiro, impertinente, incomodo, desagradável, bizarro, grotesco.

Ele foi galgando popularidade através da cobertura e abertura que a mídia lhe dava para veicular os discursos mais estapafúrdios, mas, sobretudo, por darem atenção a seus gestos e comportamentos destemperados, politicamente incorretos, para sua verve violenta, para seus discursos eivados de preconceitos e de afirmações as mais chocantes, que, não só, nunca levaram a cassação de seus direitos políticos, por quebra de decoro parlamentar, mas o alçou a fama, ao se tornar o mito de uma parcela bufônica de nossa sociedade (capaz de cantar hino para pneu, esperar os ETs vir dar golpe de estado e tentar impedir à unha um caminhão de se deslocar). Bolsonaro fez escola e agora um grande número de seguidores se utilizam das mesmas estratégias, do mesmo modelo de atuação política e parlamentar: a lacração histriônica, a bufonaria.

Temos que ter muito cuidado, no entanto, porque, ao contrário dos bobos da corte do passado, que não tinham a pretensão e sabiam ser impossível ocuparem o lugar do rei, os bobos da corte de nossa política atual, em todos os países onde atuam (vejam a figura burlesca do candidato a presidente da Argentina Javier Milei), têm a pretensão de ocuparem o poder central, de tomarem o poder para si, de galgarem o centro da vida política através dessas estratégias de diversão, de desvio do que realmente eles representam (os interesses mais antipopulares e antinacionais, os interesses mesquinhos do capital, de parcelas reacionários e conservadoras da sociedade), eles são a face risível e, por vezes, ridícula, que mascaram e servem para nos distrair da atuação das forças brutas e dos interesses mais violentos da sociedade brasileira.

Enquanto agente ri ou se indigna com esses espetáculos burlescos, as forças vivas que eles representam, agem nos bastidores e conseguem ir passando a boiada, enquanto, inclusive aqueles que podem lhes fazer oposição, se desgastam e perdem tempo, quando não entram em depressão ou desistem da vida parlamentar (Sâmia Bonfim e Jean Willis não me deixam mentir) no enfrentamento cotidiano a farsa que representam, com a desfaçatez e a candura cínica as mais insuportáveis. A atividade política, que deveria sempre ser levada a sério, vai perdendo prestígio e legitimidade popular quando ela se transforma num circo de horrores, num espetáculo grotesco.

Esse é um passo para a extrema-direita realizar o seu projeto de por fim a democracia, ao Estado democrático de direitos que exige que as pessoas se engajem seriamente na vida pública, não fazendo dela apenas um palco para ganho de popularidade, através de performances que chamam a atenção, que dá destaque, não importando a estratégia que se use para isso. Quando a política se transfora em bufonaria, os palhaços somos nós outros, os cidadãos e as cidadãs, que ficamos com um sorriso amarelo no rosto.



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