Por uma maneira arretada de pensar I: empretecer e nordestinizar o pensamento

Legenda: Beija-Flor de Nilópolis foi a vice-campeã do Carnaval 2022
Foto: Carl de Souza / AFP

Em belíssimo desfile, que a levou ao segundo lugar na disputa pelo título do Grupo Especial das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, a Beija-Flor de Nilópolis reivindicou, fez um verdadeiro manifesto, na avenida, a favor do empretecimento do pensamento brasileiro, reconhecendo e valorizando os intelectuais e artistas negros, quase sempre invisibilizados, quando não branqueados, como foi o caso de Machado de Assis. Fez o reconhecimento da contribuição cultural africana para a sociedade brasileira, não apenas no campo das manifestações culturais e cultuais, mas também no campo do pensamento, do conhecimento, da filosofia.

Costumamos apontar como legado dos africanos para a nossa cultura, suas festas, danças, cantos, muitos deles articulados pelo universo religioso e pelas práticas de culto, sem que percebamos ou ressaltemos que nas manifestações religiosas de matriz africana reside uma gnose, uma forma de entender e pensar, não apenas o divino, mas também a natureza, a relação entre os humanos, suas divindades e o meio natural. Nessas manifestações religiosas se expressam valores de cunho moral e ético, se veiculam sabedorias, modos de ser, estar e agir, maneiras de pensar, portanto.

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A escola campeã do carnaval carioca, a Acadêmicos do Grande Rio, da cidade de Caxias, homenageou, justamente, uma das entidades, uma das deidades africanas, mais incompreendida, caluniada e diabolizada: Exu ou Èsù. Basta atentarmos para como esse orixá é caracterizado, como seu temperamento é definido, qual a seu papel no interior do panteão de entidades da religião ioruba, para verificarmos que há aí uma complexa e sofisticada forma de pensamento: Exu é o elemento que dinamiza todos os seres que existem, tanto os naturais como os sobrenaturais, ele é a força que move todos os seres e, portanto, ele é força vital, pois não há vida sem movimento.

Ele é responsável pela dinâmica e expansão de tudo o que existe, sem ele não haveria devir, tudo se quedaria parado, estático, portanto, morto. Ele é um princípio de individuação, cada ser possui o seu próprio exu em seu corpo, inclusive os demais orixás cada um é acompanhado de seu Exu. Ele é o um multiplicado ao infinito. Ele também se caracteriza pela ambiguidade, pelo caráter variável, estando relacionado tanto a ancestralidade masculina, quanto a ancestralidade feminina, sendo, ao mesmo tempo, bom e ruim.

Ele é o mensageiro entre as demais divindades e entre os seres terrenos, aqueles que habitam a terra (Àiyé) e os seres celestiais, aqueles que habitam o céu (Òrun). Ele resolve todos os problemas, por isso ele é uma entidade que abre os caminhos. Ele estaria na própria origem do universo, por isso é simbolizado pela pedra de laterita, que remete a matéria primordial, a protoforma, a primeira matéria dotada de forma, lama primordial, interação entre água e terra a partir da qual foi moldado o ser humano.

Ao afirmar a necessidade de reconhecermos a contribuição africana, seja das culturas que se desenvolveram no próprio continente africano, seja daquelas que resultaram da diáspora promovida pelo tráfico de escravizados, a Beija-Flor chama atenção para o fato de que o racismo não só marginaliza e exclui da educação formal, notadamente da educação universitária, uma boa parte da população afrodescendente (o que só vem se modificando após a adoção do sistema de cotas nas universidades), mas leva à desqualificação e à invisibilidade daquilo que se constitui em contribuições originais para o pensamento humano das consideradas raças inferiores ou vistas como pouco civilizadas (os negros e os indígenas), merecendo, no máximo, a recolha e o registro como manifestações folclóricas ou da cultura popular, nunca sendo consideradas eruditas ou pertencente a chamada alta cultura.

É também o racismo que constitui a base da afirmação do ex-ministro da educação Abraham Weintraub, dada assim que tomou posse, em abril de 2019, de que as Universidades nordestinas não deveriam ensinar filosofia e sim agronomia, em parceria com Israel. Nessa afirmação existe vários pressupostos questionáveis: está implícito que o ministro considerava a filosofia um saber menos útil do que a agronomia; que os nordestinos precisavam de um ensino voltado para questões mais práticas; que o Nordeste é uma grande fazenda, é uma região rural, tem um problema que afeta a agricultura, as secas e, portanto, todos os nordestinos deveriam aprender a como cuidar da terra e fazê-la produzir com os israelenses; afinal, o Nordeste, assim como aquele país, seria um grande deserto, se reduziria a seu clima árido. Mas a mensagem mais escandalosa que essa afirmação traz é a de que os nordestinos não são afeitos ao pensar, que os habitantes do Nordeste não precisam de filosofia, pois não se destinam ao trabalho intelectual, mas ao trabalho braçal.

Como membro do colegiado do Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, vivenciei um episódio que também se alinha com esses pressupostos preconceituosos e racistas. O representante da área junto a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), em visita ao Programa, achou inadequado que ele fosse um programa, segundo ele, muito teórico.

É como se um programa de pós-graduação localizado no Nordeste não pudesse se dedicar a dimensão teórica, não pudesse produzir nada no campo do pensamento sobre a escrita, o ensino da história e sobre o ofício de historiador. O mais curioso foi ver colegas não captarem a dimensão preconceituosa, a visão distorcida na crítica ao caráter teórico do curso.

Quando afirmo que é o racismo que está na base dessa percepção do nordestino como um trabalhador braçal, como alguém pouco inteligente, como alguém pouco letrado e, portanto, pouco afeito ao trabalho intelectual, é porque o Nordeste é a região do país onde a população afrodescendente, indígena e mestiça é predominante. Fez parte do colonialismo, como continua fazendo parte de modos de pensar colonizados, a premissa da superioridade racial do branco no que toca, também, as capacidades cognitivas e ao pensamento lógico.

O racismo científico europeu, instituiu, entre os séculos XVII e XIX, uma hierarquia, entre o que denominaram de raças, no que tange as potencialidades para o uso da razão e para o pensamento científico. Na famosa lei dos três estados ou estágios, uma escala evolutiva do pensamento proposta pelo pensador francês Augusto Comte (1798-1857), o chamado pai do positivismo, somente a raça branca havia alcançado o estágio positivo do pensamento humano, os homens e mulheres de cor (como se branco também não fosse uma cor) estariam estacionados nos estágios teológico e metafísico, muitos sequer alcançando a forma religiosa superior que seria o monoteísmo, estando vivendo ainda o estágio do animismo ou do politeísmo.

O modo de pensar dos europeus, daqueles que se consideravam brancos, racionais e superiormente lógicos, seria o pensamento, com as demais raças vistas como mais voltadas para as emoções, a sensibilidade, os sentimentos, a imaginação, a fantasia, as dimensões corporais e sensuais da existência.

No imaginário nacional, o nordestino é um ser de baixa inteligência, com muita sensualidade, um ser emotivo e sentimental, um ser destinado a fazer as tarefas que empenham mais o corpo que a inteligência. Como os nordestinos, além de mestiços, são vistos como pobres, como iletrados, como ignorantes (inclusive na hora de votar – mantra dos bolsonaristas, que se devem considerar muito inteligentes), seriam incapazes de produzir algo no campo do pensamento, da filosofia, do conhecimento, devendo ser meros receptores e reprodutores do que se produz no centro-sul e em suas universidades.

Muitos devem considerar uma aberração a expansão do ensino superior na região, ainda mais a sua interiorização. O sertanejo seria capaz de filosofia, de pensamento lógico e conceitual? A ignorância é completa à medida que não há nenhum ser humano, por mais iletrado e modesto que possa ser, que não faça uso de conceitos, que não seja capaz de pensamento. O ser humano só goza dessa condição por se socializar, por apreender uma dada cultura, um dado universo simbólico, que necessariamente passa pela introjeção e vivência de conceitos.

Não há conceitos apenas na filosofia, vista como sendo um saber pretensamente ocidental, europeu, com origem na Grécia antiga. Os gregos podem ter criado o conceito de filosofia, mas eles não foram os primeiros, nem os únicos a criarem doutrinas filosóficas, a adotarem um conjunto de conceitos que servem como preceitos de vida, como formas de ver, dizer e significar as coisas do mundo. Os indianos deram origem ao budismo, os chineses ao confucionismo, os japoneses o xintoísmo, que mais do que religiões são filosofias de vida, modos de existência, estilos de vida, tal como eram as escolas filosóficas gregas. Sendo os nordestinos humanos, sendo providos de linguagem, dispondo de conceitos, eles são tão capazes de pensamento como qualquer outro brasileiro, de qualquer espaço, etnia, gênero ou condição social.

Assim como ocorre com os negros, os nordestinos não precisaram, necessariamente, da universidade e da filosofia, embora devam ter direito a elas, para dar contribuições ao pensamento e ao conhecimento no país. As artes, a literatura, as manifestações culturais e religiosas, a música, sobretudo as de caráter popular, deram e continuam dado inúmeras contribuições para o pensamento no Brasil.

Embora seja necessário, como fez a escola de samba carioca, reivindicando o empretecimento do pensamento no país, que reivindiquemos a nordestinização do pensamento, o que não significa nenhuma abordagem ou reserva regionalista do conhecimento, mas o reconhecimento e visibilização do que de singular e diverso se pensou por essas plagas do país. O que importa não é responder a esse preconceito arrolando uma lista de intelectuais de origem nordestina, que fizeram suas carreiras aqui ou em outros espaços do país, mas propondo o nordestinizar o pensamento como uma outra forma ou lógica no pensar, o que nem sempre foi o caso da contribuição de quem nasceu no Nordeste. Uma outra epistemologia, não colonizada, descolonizada, empetrecida, mestiçada, acaboclada, sertaneja e cosmopolita, uma forma arretada de pensamento.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.