Faca peixeira e masculinidade no Nordeste

Legenda: A arma branca como um elo cultural e regional
Foto: Shutter

Há uma associação, no imaginário nacional, entre o ser nordestino e o porte ou uso da faca peixeira. Era comum, em reportagens dos jornais O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo, dos anos setenta e oitenta, quando se referia a locais de aglomeração de nordestinos, na cidade de São Paulo, um receio de que ocorressem conflitos, cenas sangrentas, protagonizadas por homens portando uma faca peixeira. 

A imagem popular do homem nordestino é a de um ser ameaçador, violento, que pode, a qualquer momento, vir a furar o bucho de alguém com a sua faca de ponta. Esse imaginário não deixa de estar assentado em dados da realidade, o ferimento por faca peixeira, até vinte anos atrás, representava em torno de trinta por cento da causa de mortes por homicídio, nos estados do Nordeste. Segundo reportagem da revista Exame, de 2016, nesse ano somente o Piauí continuava tendo taxas de 31,3% de mortes causadas pelo uso de armas brancas. 

Nesse período, houve uma verdadeira explosão das mortes causadas por ferimentos com armas de fogo, a maioria dos estados apresentando taxas superiores a 80% das ocorrências fatais: Paraíba (80,9), Sergipe (81,8), Ceará (82,1), Rio Grande do Norte (81,9), Alagoas (86,8). Nesse ano de 2016, o Nordeste ficou no topo das estatísticas de homicídios no país, registrando 24.845 mortes, de um total de 61,5 mil pessoas assassinadas em todo Brasil, ou seja, cerca de 40% das mortes. Sergipe ocupava o primeiro lugar em homicídios (64 em cada 100 mil habitantes), seguido do Rio Grande do Norte (56,9 em cada 100 mil habitantes) e Alagoas (55,9 em cada 100 mil habitantes).

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Por que diante de um quadro em que os estados do Nordeste ocupam o topo das mortes por ferimentos com armas de fogo, ficando bem à frente de estados como São Paulo (59,5%) e Rio de Janeiro (67,6%), o nordestino continua sendo associado a um homem armado com uma arma branca? Podemos dizer que há uma verdadeira cultura da arma branca na região, da qual estudos etnográficos como aquele realizado pelo intelectual potiguar Oswaldo Lamartine. Apontamentos sobre a faca de ponta, registra, documenta e dá testemunho. 

Por outro lado, trabalhos como o do etnógrafo norte-rio-grandense servem para reforçar a relação, no imaginário nacional, entre nordestinidade e o apreço pelo uso e porte de uma faca de ponta. Embora a arma branca tenha sido tradicionalmente a arma dos homens pobres, já que estavam impossibilitados, dada a falta de posses, de adquirir uma arma de fogo (com exceção da chamada espingarda sovaqueira, que era normalmente utilizada para a caça), ela não deixava de ser usada e, como o trabalho do membro da elite potiguar demonstra, era motivo de apreço e coleção por parte dos membros das elites sertanejas. 

A arma branca era utilizada mesmo por aqueles que dispunham de uma arma de fogo, ela servia para o embate corpo a corpo, era o último recurso quando a arma de fogo falhava ou quando acabava a munição. Além de seu rifle e do seu famoso parabélum, o cangaceiro Lampião portava, em seu cangaço, um longo e afiado punhal. Embora houvesse uma clara hierarquia social entre aqueles que podiam possuir armas de fogo, notadamente as mais caras e sofisticadas, e aqueles que só podiam dispor de armas brancas, elas atravessavam as fronteiras de classe e se faziam presentes nas cinturas da maioria dos homens.

A faca peixeira, assim como o canivete, eram elementos quase indispensáveis das vestimentas dos homens pobres ou ricos da região Nordeste, notadamente no meio rural, até entrados os anos oitenta, quando isso começa a mudar. 

O pretexto para seu porte era os diversos usos que dela podia e precisava ser feito: picotar o fumo de rolo para se fazer o cigarro; cortar a rapadura e outros alimentos, quando se fazia necessário se alimentar no serviço; cortar o mato e extrair a madeira; cortar cactos e plantas de espinho, retirando-as do caminho; picotar a palma forrageira ou o capim para oferecer como ração para o gado, etc. Além de usos mais bizarros como: cortar as unhas dos pés e das mãos e palitar os dentes. 

A faca além de ser um objeto utilitário, de fácil acesso, já que eram fartamente e livremente vendidas em qualquer feira livre, ela servia para a defesa pessoal, seja contra bichos do mato, seja contra outros homens, que adotassem uma postura ameaçadora, que perpetrasse alguma desfeita, que chamasse o outro para a briga. 

A faca peixeira, ou no mínimo o punhal e o canivete, devia estar à mão para qualquer situação: de trabalho, de precisão ou de defesa. Por isso ela devia ser transportada na cintura, dentro da bainha, pendurada na cinta, no cinturão ou mesmo num cordão de embira, para quem, de tão pobre, não podia possuir um cinto de couro.

O porte de uma faca, de uma arma branca, mesmo que fosse uma faquinha ou canivete, estava atrelada a construção da própria masculinidade (hoje sendo substituída pela arma de fogo, ainda mais letal, o que explica a explosão da violência sanguinária na região). O menino, ainda frangote, já estadeava ares de macho se levava na cintura sua faquinha de ponta. 

A permissão de andar armado, de andar com sua faca, era um verdadeiro rito de passagem para a idade adulta. Como na sociedade rural nordestina a infância acabava muito cedo, com o engajamento das crianças, notadamente aquelas das camadas populares, no mundo do trabalho, cedo também se reivindicavam o status de adulto. Mesmo entre a classe proprietária de terras, era comum a entrada precoce no mundo do trabalho, notadamente daqueles filhos que “não davam para os estudos” ou “não gostavam de estudar”. 

Nesse caso o tornar-se adulto também se dava numa idade bastante precoce, sendo comum encontrar moleques de pouco mais de dez anos a se gabar de aventuras amorosas e sexuais, ao mesmo tempo que alisava sua faquinha, numa clara denotação de que ela era uma espécie de falo substituto.

Portar uma faca era um signo de masculinidade, de macheza, de que já se havia tornado um homem. Entre o porte da arma e seu uso para perpetrar gestos de agressão contra outros adolescentes ou adultos, em situações em que porventura se sentisse humilhado ou tivesse a sua macheza contestada, posta à prova, era uma questão de segundos. 

A faca peixeira era o instrumento do cometimento de muitos crimes banais, de crimes de circunstância, nascidos de altercações e de conflitos, muitas vezes, que surgiam entre conhecidos e até velhos amigos, notadamente no decorrer de festas, forrós ou mesmo na bebedeira de bar ou bodega, já que o porte de arma se somava aí à ingestão de bebida alcoólica. 

A faca peixeira, como um instrumento pontiagudo, um instrumento de penetração na carne do outro, é um substituto imaginário para o falo, ela seria a encarnação do poder e da prerrogativa masculina de penetrar, de furar a carne de outrem. 

Ao ter sua masculinidade posta à prova, desafiada, posta em questão, o gesto de furar o outro, notadamente no ventre, era um gesto de afeminação desse outro e, por conseguinte, de reafirmação, de restauração de sua masculinidade. A sociedade sertaneja dava e dá enorme valor a chamada honra masculina, que é muito mais abstrata do que a honra feminina, que costuma ser materializada e encarnada pelo hímen. 

O homem para ser honrado deve ser respeitado e reconhecido, em sua masculinidade, em sua macheza, principalmente, pelos outros homens. Quando os homens violentam suas mulheres em nome da honra, não é nelas ou nas mulheres que eles estão pensando, mas no julgamento dos outros homens, no que eles vão dizer sobre eles.

Para um menino ainda em processo de formação de sua identidade masculina, ainda em busca de ser aceito como um igual entre os machos adultos, o porte da faquinha, desse falo substituto, era simbolicamente relevante e significativo. 

Embora, muitas vezes, ainda fosse motivo de embaraço e de riso o tamanho de sua piroquinha, embora ainda não tivesse a sonhada barba, ainda fosse desprovido de pelos, embora não pudesse narrar, a não ser como fruto da fantasia e da mentira, uma aventura sexual com as mulheres (já que suas experiências sexuais com outros moleques não era coisa para se falar ou se exibir, mas motivo de vergonha), a faca peixeira, ou mesmo o punhal e o canivete, apareciam como esse signo de entrada no mundo dos machos e dos homens. 

O culto à faca de ponta e as armas brancas, do qual a coleção, feita durante toda a vida, pelo industrial e mecenas cultural pernambucano Ricardo Brennand, bem como a etnografia escrita por Oswaldo Lamartine, são exemplos destacados, representa, também, o culto há um dado modelo de masculinidade, um culto à sociedade patriarcal, à sociedade dos coronéis e dos jagunços, dos cangaceiros e dos cabras machos, dos cabras da peste. 

Esses descendentes de elites rurais decadentes e tradicionais, esses homens que não puderam atualizar um dado padrão e modelo de masculinidade, que não puderam mais ser homens como foram seus avôs e seus pais, trazem essa nostalgia por esse masculino para suas vidas e suas obras. 

Essa saudade dos homens feitos nas armas, que se espalha por toda a produção cultural da região, desde em seus gêneros mais populares como a poesia de folhetos, as cantorias, desafios e emboladas, até na literatura, no cinema, no teatro, representa a saudade de um padrão de masculinidade em crise, desde que a modernidade trouxe profundos rearranjos nas relações entre os gêneros. Esse culto é um estímulo a violência masculina que atinge altos níveis na região. 

O culto bolsonarista às armas nasce de homens que sentem suas masculinidades cada vez mais fragilizadas e contestadas pelos avanços e conquistas sociais das mulheres e dos homossexuais. 

Esse culto a arma branca e, ao mesmo tempo, essa associação do nordestino a um perigoso e traiçoeiro homem armado de faca peixeira, um estripador, nascem dos mesmos processos sociais marcados por essa nostalgia de uma sociedade de machos, inteiramente livres para matar ou para morrer, dependentes apenas de sua coragem, valentia e destemor para alcançar fama, respeito e um lugar ao sol, dependentes apenas da habilidade em manusear uma arma para se afirmar como machos, como homens de verdade. 

Nostalgia de homens que já não podem tão livremente contar com o falo substituto no cinto e na bainha, para afirmarem suas masculinidades, sempre que elas forem contestadas, o que é frequente nos tempos que correm. Hoje seria o tempo dos covardes, dos que matam com arma de fogo, por traição e emboscada, tendo passado o tempo dos homens de verdade, que se “faziam na faca”.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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