Embora não tenha sido o primeiro, o crítico literário francês Roland Barthes (1915-1980) foi um dos mais persistentes em estabelecer a relação entre o adoecimento e o gesto da escrita. Ele mesmo um homem doente, padecendo de tuberculose, grande parte de sua adolescência e juventude, chamou atenção para o fato de que muitos dos grandes nomes da literatura ocidental, eram homens doentes, muitos deles sofrendo do mesmo mal que o acometia.
Roland Barthes foi, certamente, o primeiro crítico literário a tomar o corpo adoecido como um elemento importante e a ser levado em conta na análise dos textos literários, mas também de outros gêneros de escrita. Enquanto esteve internado em vários sanatórios franceses e suíços, entre os anos de 1940 e 1946, fato que o fez, em grande medida, ter uma vida protegida, que passou ao largo da Segunda Guerra Mundial, ele se dedicou a ler as obras completas do famoso historiador romântico francês, do século XIX, Jules Michelet (1798-1874), redigindo milhares de fichas, pois pretendia redigir sua tese de doutorado sobre sua escrita, se conseguisse se recuperar da doença e pudesse voltar à vida acadêmica.
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Embora não tenha conseguido redigir a tese que planejava, mais tarde, em 1990, ao publicar o livro intitulado Michelet, reunindo os textos que escrevera sobre ele, Barthes utiliza a doença, os males do corpo de que padecia o ilustre historiador, para entender como ele pensava a história e como ele a escrevia. Acometido de periódicas crises de enxaquecas, sofrendo de náuseas e tonturas constantes, Michelet, segundo o crítico literário, pensava que a história, assim como um corpo doente, era um processo também sujeito a convulsões, a crises febris e a tempos de calmaria e espera.
A atenção que um doente dedica a seu corpo, notadamente aquele que padece de uma doença prolongada e que pode ser fatal, como a tuberculose, o estado de alerta permanente diante de algum sintoma que possa significar o agravamento ou a melhora de seu estado de saúde, faz do doente, um atento observador de detalhes, um colecionador de suas febres, de seus dias de prostração, bem como de seus dias de melhora, de seus dias de animação e de desânimo.
Barthes identifica que Michelet daria a temporalidade histórica essa mesma ciclotimia, esses altos e baixos, essa oscilação entre tempos de alegria e euforia e tempos de melancolia e depressão.
Se pensarmos que grandes nomes da literatura nacional e internacional foram homens e mulheres doentes, podemos nos perguntar qual a relação entre o adoecer e o ato de escrever?
Somente entre aqueles que padeciam de tuberculose podemos nomear: Marcel Proust, Thomas Man, André Gide, Albert Camus e o exemplar caso do poeta Manuel Bandeira, entre nós. O poeta e escritor paulista Glauco Mattoso fez da doença seu próprio nome de autor: sofrendo de glaucoma, que o levou a cegueira, transformou o ser glaucomatoso em sua própria identidade literária.
Como afirma Barthes, a doença, ao mesmo tempo em que cria um sentido de urgência, a necessidade de deixar alguma coisa escrita, que justifique e lembre aquela vida que se esvai, oferece um tempo vago, alongado, que propicia que a escrita se faça. Vivendo anos em um sanatório, sem poder conviver com ninguém do mundo exterior, sem poder sair daquela comunidade fechada, o tuberculoso é alguém que vê o tempo todo sua vida se esgotar, seu tempo acabar e, contraditoriamente, vê as horas, os meses e os anos se alongarem, em busca da cura sonhada.
Como vai dizer o crítico literário francês Maurice Blanchot (1907-2003), escrevemos, muitas vezes, para não morrer, para adiarmos a morte. Quando na velhice resolvemos escrever as nossas memórias, buscamos reviver a vida que tivemos, mesmo os seus momentos menos felizes e, ao mesmo tempo, apostamos que enquanto estivermos escrevendo, estivermos produzindo a morte e, outras formas do morrer: a loucura, a caduquice, a desmemoria, não vão nos atingir.
O escritor gaúcho Érico Veríssimo (1905-1975), já muito debilitado, resolve iniciar a escrita de suas memórias, Solo de Clarineta (1973, 1976), e chega a afirmar que sua escrita estava adiando a sua morte. Um doente escreve, antes de mais nada, para fazer o tempo passar, para se distrair, para deixar de ter toda a sua atenção voltada para o corpo. O corpo é a parte de nós que preferimos que não dê sinais de sua presença, preferimos que permaneça a parte de nós que permanece em silêncio.
A doença implica um conjunto de sintomas que chama atenção, não apenas para a materialidade das carnes, para a sua presença incontornável, como também para sua fragilidade, para sua precariedade e mortalidade. A doença nos faz recordar que somos finitos, que o nosso tempo nesse mundo irá se esgotar, que somos passageiros e que, por isso mesmo, devemos procurar nos dar alguma forma de eternidade.
A escrita sempre esteve associada a ideia de fama, de deixar o nome de quem escreve na memória dos homens e mulheres. A escrita é uma das maneiras de se buscar a eternidade, o não esquecimento, de se perpetuar entre os humanos. A escrita oferece sentido para uma vida que se vê ameaçada, ela justificaria o ter estado aqui na vida terrena, ela preencheria o vazio de uma existência ameaçada pelo morrer.
A escrita de um livro, ao lado do plantio de uma árvore e da procriação foram sempre aconselhadas como formas de se fazer lembrado entre aqueles que vivem. A escrita teria uma função curativa, ela, através da alegria e do sentimento de realização que proporcionaria, favorecia a convalescência à medida que reforçaria a vontade de permanecer vivo, o próprio sentido de existência, afastando o desejo de sucumbir e a melancolia, que favoreceriam o estado de adoecimento.
O ato de escrever, como qualquer ação, como tudo aquilo que significa por o nosso ser em movimento, é a própria expressão do estar vivo, é a afirmação da vida. Toda vez que nos aproximamos da morte, o gesto de escrever nos faz reafirmar o desejo de continuarmos vivos, de continuar escrevendo.
A escrita justificaria a própria existência, ela permite que uma vida que podia ser vazia de sentido, uma vida que não teria nenhum conteúdo, possa se legitimar perante aquele mesmo que escreve e perante a sociedade. A escrita, em nossa sociedade, é considerada uma atividade de trabalho. Na sociedade burguesa, em que o trabalho passou a ser muito valorizado, sendo aquilo que justifica e dá sentido a existência, que a preenche com o sentido de utilidade, tão valorada nessa ordem social, a equiparação do escrever com o trabalhar a dotou de dignidade e a permitiu ocupar esse lugar de um fazer que legitima o existir.
A doença, em nossa sociedade, equivale ao não trabalho, o tempo do adoecer é o tempo do não trabalhar. Se alguém consegue escrever, mesmo doente, a doença não instaurará esse tempo do não trabalho, que para a nossa sociedade, é o tempo da perda de tempo, o tempo do não viver, o tempo da inutilidade. A escrita do doente alivia a sua própria consciência, pois ela permite que ele não recaia na categoria do inútil, do incapaz, do improdutivo, que o atiraria para uma condição de quase mortalidade. A escrita impede que o doente seja um morto-vivo.
A doença não só permitiria, portanto, a escrita, como a convocaria, por ser a única forma do doente afirmar a sua vida, a única forma dele dizer que ainda não está morto. A relação entre escrita e doença e, portanto, entre escrita e saúde, já debatida pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), estabelece a inseparabilidade entre o ato de escrever e a corporeidade de quem escreve.
A escrita é produto de um corpo, nasce do gesto de uma mão, é a expressão de um estado anímico, mas também de um estado de saúde física e psíquica. A escrita deixa passar emoções, sentimentos, desejos, pulsões eróticas, que habitam umas carnes, que compõem um corpo. Há uma relação entre a escrita e o desejo, entre a escrita e a sensualidade, entre a escrita a sedução e o charme. Quando escrevemos buscamos seduzir o leitor, buscamos atrai-los para nossas ideias, para nossos valores. Quando escrevemos buscamos ser amados, queridos, recepcionados pelos outros. Há entre quem escreve e quem lê uma troca de afetividades, uma troca de sentimentos, de emoções.
A escrita envolve o leitor num clima que é produzido pela forma da narrativa daquilo que leu. A escrita permite que sobrevivamos aos momentos mais difíceis. Barthes preenchia as intermináveis horas em que estava encerrado nos sanatórios lendo, fichando suas leituras e escrevendo. Foi com a doença que chegou a desenvolver o método de trabalho que levará para toda a vida. Com ela aprenderá a resiliência, a paciência, o aproveitar de todo tempo que lhe era dado para realizar a sua obra, uma escrita que fosse o registro de sua passagem por esse mundo, que justificasse, inclusive a seus olhos, o ter existido.
Sua vida, frágil e incerta, deveria merecer registro, em diários, cadernetas de anotações, correspondências inúmeras, só assim tinha assegurada a sobrevivência de si, mesmo que fosse somente naquelas linhas sobre papeis. Escrever para não morrer e morrer escrevendo, era o destino daqueles que, como nomeou Câmara Cascudo, viviam na condição de doente aprendiz.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.