No meu Cariri III: memórias de um Nordeste que quem tem menos de trinta anos não sabe que existiu

Foto: Honório Barbosa

No Cariri paraibano, em que vivi minha infância e parte da adolescência, do que mais se falava era de faltas, de ausências. Falava-se sobre e vivia-se a falta da presença do Estado, dos governos, de qualquer serviço ou política pública. Embora morasse a pouco mais de dezesseis quilômetros de distância da sede do município, a cidade de Boqueirão, ela parecia ser um lugar distante e remoto, pois a presença do governo municipal não se fazia sentir em nenhum aspecto. Essa era uma realidade bastante generalizada em todo o meio rural do Nordeste, até o início dos anos dois mil. As estradas eram todas carroçáveis, muito pouco cuidadas, se tornando verdadeiros lamaçais, intransitáveis em alguns trechos, quando da época de chuvas.

Na maior parte do tempo eram estradas poeirentas, cheias de irregularidades, de buracos, mais afeitas ao trânsito de animais e de pessoas montadas em cavalos ou burros, do que ao trânsito dos raros automóveis ou caminhões que existiam nas redondezas. Automóvel era ainda uma novidade, a ponto de fazer todas as pessoas correrem para as portas das casas para vê-lo passar, muitas especulando sobre quem eram os passageiros e para qual terras se dirigiam.

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Quando vemos, hoje, no Nordeste, os animais substituídos por motocicletas até para tanger o gado, quando ter um carro se tornou coisa comum para aqueles mais abastados, não nos damos conta de que estamos a apenas trinta ou quarenta anos daquele Nordeste em que apenas os caminhões de feira (caminhões pertencentes aos mais endinheirados e que faziam a linha, ou seja, transportavam pessoas, mercadorias, animais até as feiras mais próximas, quase sempre nas quartas-feiras e/ou sábados, para que vendessem seus produtos e fizessem as compras semanais ou do mês) circulavam pelas estradas rurais poeirentas ou, muitas vezes, tinham que ser desatolados a força do muque dos passageiros ou de parelhas de bois de carro (carros puxados por bois) chamados a desenterrar o veículo do lamaçal.

Até os anos 1970, nem mesmo as principais rodovias eram asfaltadas. Me lembro de ainda viajar, por alguns anos, pela PB-148 e pela BR-104, que ligavam o município de Boqueirão ao de Campina Grande, onde todo sábado meu pai ia fazer a feira e vender produtos de agrícolas e pecuários, totalmente ainda na terra. Se a circulação de pessoas e mercadorias é fundamental no capitalismo, se a velocidade com que essa circulação se dá é fundamental para acelerar a realização do valor, para o lucro, vivíamos num Nordeste em que as relações capitalistas eram precárias, um Nordeste rotineiro, atrasado, desprovido de meios de transporte e comunicação adequados. O município de Boqueirão, como a maioria dos municípios do Nordeste, era dominado politicamente pelo coronel Ernesto Heráclio do Rêgo, que chegara à região com um ano de idade, indo residir no município de Cabaceiras, a quem pertencia a vila de Carnoió, que após a construção do Açude Epitácio Pessoa, em 1958, virá a se tornar o município de Boqueirão. Ele viera da cidade de Belo Jardim (PE), onde nascera, no ano de 1910, voltando a seu estado natal para cursar o ensino médio na cidade de Limoeiro. Esses dois municípios pernambucanos também eram dominados politicamente por sua família. Em 1947, filia-se a UDN e é eleito prefeito de Cabaceiras, sendo reeleito em 1955. Em 1963, com a elevação da antiga povoação de Carnoió a condição de município, se elege prefeito de Boqueirão, onde se torna prefeito mais duas vezes de 1973 a 1977 e de 1983 a 1988, além de exercer o poder através da eleição de outros seus aliados. Nos trinta anos em que governou o município a região onde eu morava não só nunca viu a sua presença ou de qualquer prefeito, como nenhuma obra foi feita.

Tive que cursar o antigo curso primário (as primeiras séries do ensino fundamental) com a minha mãe, em casa, porque também não havia escola num raio de quilômetros, como na maioria das áreas rurais do Nordeste. A escola mais próxima, que oferecia uma classe para todas as séries do ensino fundamental, uma única sala, com uma única professora para ensinar da alfabetização ao quarto ano, ficava a mais de vinte quilômetros de onde eu vivia. Era comum ver, na região, até os anos noventa, meninos e meninas a andar a pé, quilômetros, para estudar, sob um sol causticante, malvestidas e mal calçadas. Os mais abastados iam de bicicleta (veículo do sonho da maioria dos mais pobres, pois significava deixar de andar a pé) ou montados a cavalo. Quando vemos, hoje, estados do Nordeste, como o Ceará e o Piauí se destacarem nacionalmente no campo da educação, não podemos imaginar o atraso educacional em que essa região vivia até o início dos anos dois mil. Quando o Programa Caminho da Escola, do governo Lula, encheu a região de ônibus amarelos e pretos, a transportar as crianças para as cidades e as escolas, ficava para trás a realidade de uma região de crianças que cedo desistiam de estudar pelo sacrifício que era para se deslocar até uma escola, pela péssima qualidade do ensino ofertado, pela falta de estímulo por parte dos pais, que cedo queriam seus filhos como mão-de-obra suplementar, incentivando o trabalho infantil. A maioria das professoras eram leigas, contratadas por apadrinhamento de vereadores e prefeitos, sem nenhuma formação adequada, sendo sua única credencial pertencer ao curral eleitoral do grupo dominante e, portanto, sendo facilmente demitidas quando a situação política mudava. Pessoas que tinham cursado somente até a terceira série primária dava aula para os alunos da primeira e segunda série. A área rural em que eu vivia só passou a ter uma escola no final dos anos setenta, quando um fazendeiro vizinho resolveu criar uma escola, para que sua nora professora, recém-casada com seu filho, pudesse exercer seu ofício, valendo-se de sua condição de cabo-eleitoral de Sr. Ernesto.

Não é preciso dizer que no meu Cariri também faltava energia elétrica, que mesmo as casas dos mais abastados fazendeiros eram iluminadas a lampião, candeeiros ou lamparinas. O mais chic era o lampião a base de gás, acondicionado em pequenos botijões e quem emitiam uma luz mais nítida e forte. Mas o mais comum era, mesmo na casa dos mais abastados, a iluminação a base de candeeiros alimentados por gasóleo ou querosene, que emitiam uma luz mortiça e amarelada. Era preciso espalhar muitos deles pela casa se a quisessem toda iluminada, usando para isso, suportes pendurados nas paredes. Os mais pobres tinham que se contentar com as fumacentas lamparinas de um ou dois bicos, normalmente fabricadas de latão ou zinco, abastecidas com gasóleo, com pavio de algodão, que produziam uma chama amarelada, que iam deixando as paredes ou qualquer superfície de que se aproximavam enegrecidas pela fuligem que soltavam. Elas podiam ser transportadas para onde a pessoa queria se deslocar através de pequenas alças. Somente com o Programa Luz para Todos, do governo Lula, grande parte das lamparinas e candeeiros foram aposentados no Nordeste. Para se ter uma ideia da incúria da prefeitura de Boqueirão, a luz elétrica chegou na fazenda de meu pai, não através da administração de seu município.

Cansados de esperar pela luz, meu pai e outros moradores da localidade se reuniram e foram falar com o prefeito da cidade de Campina Grande, Cássio da Cunha Lima, que tinha pretensões políticas em nível estadual e foi por uma iniciativa de uma prefeitura vizinha que a lamparina foi aposentada na casa de meu pai. Cássio fez a implantação da energia ir muito além dos limites de seu município sabendo que estava conquistando eleitores para suas futuras pretensões de ser governador do estado, o que veio a se concretizar.

Se faltavam estradas e qualquer tipo de transporte coletivo, com todos os moradores das zonas rurais ficando na dependência dos donos de caminhões ou de mistos (caminhões que tinham cabine dupla, uma boleia maior, podendo levar maior número de passageiros sentados em bancos estofados, normalmente as mulheres, ao invés deles viajarem sobre as cargas transportadas pelo veículo, onde vinham encarapitados a maioria dos passageiros. Alguns, quando o caminhão estava muito cheio, viajavam pendurados do lado de fora do veículo, com os pés apoiados nos estribos, dizia-se, nesse caso, que se viajava amossegado ou amossergado, ou seja, como se fosse um morcego), se faltavam escolas e professores, se faltava iluminação elétrica, imaginem a situação da assistência a saúde, antes da criação do Sistema Único de Saúde, pela Constituição de 1988, na maioria dos municípios nordestinos, tanto nas zonas urbanas, quanto nas zonas rurais.

Postos de saúde não existiam, muito menos hospitais fora das capitais e de alguns grandes municípios do litoral e do interior. A maioria da população de baixa renda, quando adoeciam, se valiam da farmacopeia popular, dos remédios caseiros, feitos com as plantas da caatinga, com plantas medicinais cultivadas nas pequenas hortas, nos fundos de quintais ou em jarros, espalhados pelas casas, ou adquiridas nas feiras regionais. Lambedores, emplastos, infusões, chás, compressas quentes ou frias, garrafadas, xaropes, além do recurso a benzedeiras e fabricantes de remédios caseiros era o que dava valimento aos pobres em momentos de dores e sofrimentos físicos. Nem é preciso falar da ausência completa de dentistas, profissional que era tido como um luxo. Antes do Programa Brasil Sorridente, criado no governo Lula, o tratamento dentário nas camadas populares nunca foi uma preocupação. O Brasil, como o Nordeste, era o país dos banguelas, como cantou a banda Titãs, de pessoas que perdiam todos os dentes muito cedo, que viviam com as bocas cheias de cacos de dentes corroídos pelo tártaro e pelas cáries.

O Nordeste era a região da dor de dente, que levava a pessoas ficarem com rostos inchados, a se colocar verdadeiras tipoias nas faces, era a região das dentaduras distribuídas por políticos em época de campanha, aquelas pererecas a granel, acondicionadas em sacos nos comitês eleitorais, que cada um podia ir provando até encontrar aquela que melhor se encaixava em sua gengiva, quase sempre completamente sem dentes, porque a única solução para a maioria era mandar extrair os dentes, ou o que restava deles, para se verem livres das dores nas queixadas ou nos caninos, como era comum se dizer.

Se hoje os nordestinos ainda sofrem nas filas dos hospitais, se ainda são mal atendidos nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) e nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAS), também criadas nos governos do PT, até porque parte do pessoal da saúde, notadamente médicos e médicas, não estão preparados ética e subjetivamente para atenderem a essa população, são pessoas oriundas das classes médias e das elites sociais e não possuem a menor identificação com seus pacientes, daí o sucesso incômodo que os médicos cubanos, trazidos pelo Programa Mais Médicos, obteve entre a população mais humilde, imaginem o que era o atendimento a saúde antes dessas iniciativas. No meio rural nordestino, como em muitos pequenos municípios, o acesso a uma ambulância para o transporte de um doente mais grave para onde houvesse hospital e atendimento médico, também era motivo de barganha política e da constituição de laços de gratidão eterna com o coronel do lugar, que muitas vezes usava seus próprios veículos para prestar esse “favor” num momento de tanta aflição.

Esse Nordeste em que faltava de tudo parece nunca ter existido, nos dias de hoje, notadamente para as camadas urbanas e as pessoas pertencentes as classes médias e as elites endinheiradas, mas essa região da carência completa, do falta de tudo, existiu até muito recentemente, porque era a própria base de reprodução do poder e do dinheiro de uma elite política e econômica que não estava nem aí para o sofrimento da maioria, se aproveitando dele para afirmar o seu domínio.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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