No meu Cariri I: memórias de um Nordeste que quem tem menos de trinta anos não sabe que existiu
Embora tenha nascido na cidade de Campina Grande, no início dos anos sessenta, vivi quinze anos de minha existência no meio rural, numa fazenda localizada no município de Boqueirão, pertencente ao chamado Cariri paraibano. Essa área é uma das mais áridas do sertão desse estado, com precipitações pluviométricas médias de 300 mm anuais. Ao contrário do Cariri cearense, que é uma das áreas mais úmidas e chuvosas do sertão do Ceará, com precipitações pluviométricas médias de 700 a 900 mm anuais, no Cariri da Paraíba o período de chuvas costuma ser curto e concentrado em alguns meses do ano, mesmo naqueles mais chuvosos.
Pude conhecer de perto um sertão nordestino que aqueles que contam hoje com menos de trinta anos de idade não sabem sequer da existência.
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Os muitos jovens bolsonaristas da região Nordeste, a maioria deles nascidos em cidades, não avaliam as transformações pelas quais essa região passou, notadamente no meio rural, nos últimos vinte anos. Aqueles que viram essa transformação acontecer e fazem de conta que não viram, o fazem por má fé ou por visões ideológicas, movidos por interesses econômicos ou políticos. Nesse artigo vou contar um pouco sobre o meu Cariri, aquele da minha infância e adolescência, aquele que Dilú Melo e Rosil Cavalcanti transformaram em uma canção, que fez enorme sucesso na voz da cantora Marinês, que dizia: “No meu Cariri/ quando a chuva não vem/ não fica lá ninguém/ somente Deus ajuda/ se não vier do céu/ chuva que nos acuda/ macambira morre/ xique-xique seca/ juriti se muda.”
O Cariri em que eu vivi era, sobretudo, marcado pela miséria, pela existência de uma população de homens e mulheres que vagavam de fazenda em fazenda em busca de trabalho, sujeitos às condições mais degradantes de existência. Sou filho de um pai dono de terras que, periodicamente, contratava esses trabalhadores para serem seus moradores. Contratava, evidentemente, é força de expressão, porque contrato algum havia, a não ser aquele feito oralmente, em que meu pai, o patrão, expunha as regras que esses moradores deviam seguir e apresentava as “benesses” a que teriam direito. A moradia era uma das várias formas de relação de trabalho existentes no sertão, como a parceria, a meiação, onde não se previa o pagamento de salário. Ou seja, os trabalhadores no Cariri, em sua maioria, dificilmente pegavam em dinheiro, era uma economia desmonetarizada, em total contrassenso com uma sociedade capitalista.
Normalmente o trato com o morador envolvia a oferta de uma casa para morar, verdadeiras taperas de taipas, casas feitas com barro, madeira e cobertas com telhas. A casa que meu pai ofertava tinha duas salas, dois quartos e uma cozinha, para abrigar famílias, muitas vezes, bastante numerosas, algumas com até quinze pessoas. Na extensão do núcleo familiar, estava o grande segredo dessa relação de trabalho, pois o patrão contratava o pai de família, com quem fazia o trato, e ganhava de presente a mão-de-obra, a força de trabalho de todos os que o acompanhavam. E quando digo todos, eram todos, mesmo, pois até as crianças acima de seis anos e as mulheres “ajudavam” o pai e o marido em atividades pesadas como a broca de mato, a limpa e plantio de roçados, a colheita e o trabalho com o gado. Me lembro de um rapaz que sofria de ataques epiléticos a cair e se contorcer no chão, no meio do roçado em que estava limpando o mato utilizando uma enxada, que por milagre não o feria.
Além da moradia, o trabalhador recebia um pedaço de terra onde, nos sábados e domingos, podia plantar produtos para sua subsistência (milho, feijão, fava, abóbora, melancia). Esse detalhe do contrato fazia do meu pai um patrão bom e generoso, um cristão como ele gostava de ser identificado, pois não era todo patrão que ofertava esse “luxo”. No entanto, em caso de descontentamento e aborrecimento, o patrão ao despedir o morador, sem qualquer tipo de indenização, ficava com o que ele havia plantado, impedindo que colhesse qualquer coisa e levasse consigo. O contrato previa, ainda, como “benesses” e/ou remuneração um litro de leite diário, em caso de o morador ter filhos pequenos, retirado daquele ordenhado das vacas da fazenda - ordenha de que participava, muitas vezes, o morador - e a compra pelo patrão de produtos básicos como: café, açúcar, sal, arrozina ou araruta (para a papa das crianças), querosene ou gasóleo.
Alguns patrões forneciam esses produtos através de sua própria bodega, mercearia ou barracão, anotando em caderneta apropriada, para fazer o desconto em caso do trabalhador ser contratado para fazer uma empreitada (empeleitada), ou seja, realizar um serviço eventual, como: a construção de uma cerca, de um curral, de uma cocheira, a reforma de uma casa, a perfuração de um poço ou a feitura de um barreiro ou açude, que envolviam remuneração em dinheiro, quase sempre tão irrisória, que o empregado deixava tudo nas compras que fazia ao próprio patrão que, assim, os explorava duplamente, no trabalho e nas relações comerciais.
O que mais me impressionava era a subserviência dessas pessoas, como séculos de escravidão, pobreza e dependência, deu origem a uma população conformada com a situação de mais absoluta miséria, se submetendo sem muitas reclamações à uma exploração brutal. Eram homens e mulheres que se diziam humildes e respeitadores, que literalmente abaixavam a cabeça e tiravam o chapéu para toda e qualquer pessoa considerada de maiores posses, a quem chamavam de doutor, patrão, chefe. Quantas vezes vi essas pessoas não ousarem entrar em nossa casa, mesmo quando convidados: a vergonha e o acanhamento era um traço psicológico da maioria, uma subserviência entranhada em cada gesto.
Pessoas que andavam vestidas de andrajos, roupas feitas com sacos de açúcar, com a chita ou a mescla a mais vagabunda, costuradas a agulha, muito sujas e enodoadas. Os homens usavam como cinto embiras de caroá e somente os calções, também feitos de saco, impediam que ficassem com suas vergonhas à mostra. A mobília da casa era apenas redes, onde dormiam e sentavam; alguns potes e panelas de barro, algumas canecas de ágata e, muitas vezes, um único prato do mesmo metal, que era usado por toda a família, comendo um por vez. As crianças, quase sempre subnutridas, que já nasciam com defeitos ósseos provocados pela deficiência de cálcio das mães, eram alimentadas - se não ganhassem o leite -, com papa d’água, que era uma espécie de cola incolor que era administrada sem o uso de colher ou mamadeira, mas com o dedo da mãe, que ia empurrando aquele grude doce boca abaixo da criança.
Crianças mirradas, amarelas, com manchas na pele, denunciando a falta de vitaminas e enormes barrigas a indicar a presença de verminoses, motivada, inclusive, pela ingestão de terra. Muitas morriam muito cedo, iam se juntar aos inúmeros “anjinhos” que iam povoar os cemitérios, enterradas em seus caixõeszinhos azuis, os mais baratos.
Eram homens e mulheres que não sabiam o que era usar um sapato, no máximo alpercatas de couro, quando não andavam de pés descalços, tal como faziam os escravos. Os pés dessas pessoas sempre me chamaram a atenção, neles estavam documentados todos os maus tratos e os infortúnios de uma vida a carregar coisas muito pesadas na cabeça, a andar léguas a pé, pisando em uma terra quente ou na lama, a puxar mato para os pés. Eram pés disformes, cheios de rachaduras nos calcanhares, com as solas parecendo uma verdadeira crosta, as unhas, todas, endurecidas e enegrecidas das inúmeras topadas e machucões. Pessoas que só comiam carne se saíssem à caça de pássaros e animais de pequeno porte: como preás e calangos, ou quando, em dias de festa na fazenda, recebiam alguma do patrão.
Eu vivi num Cariri em que a população só comia arroz em festa, não plantava ou mesmo gostava de verduras e consumiam só as frutas que podiam colher na caatinga, como o umbu e os frutos dos cactos. Quantas vezes vi os trabalhadores cozinharem, em uma trempe improvisada com três pedras, a base de lenha, em caldeirões de alumínio ou panelas de barro tão amassados ou pretos de fuligem que pareciam roupas pretas vincadas, um feijão de má qualidade, duro, que levava horas fervendo sem amolecer. Quando chegava o meio-dia, fazia aquela que seria a única refeição durante todo o dia, feijão com farinha, sem qualquer mistura. Ao final podiam tomar um café feito sem coador, num litro de óleo, deixando o pó assentar no fundo, depois da fervura, sempre com bastante açúcar, muito doce, talvez porque adviesse daí a energia que empregavam em tantas horas de trabalho.
Foram essas condições de trabalho, de existência, que as políticas sociais dos governos petistas, que o Bolsa Família, que o aumento das aposentadorias veio tornar coisa do passado. Para a revolta dos patrões, como o meu pai, já não se encontrava ninguém que quisesse trabalhar nessas bases contratuais. Todos agora só trabalhavam em troca do pagamento de salário, salário que não podia ter qualquer valor, sob pena de ser mais vantajoso continuar em casa. A opinião generalizada entre os exploradores de antanho era a de que as políticas sociais incentivavam a preguiça, a vagabundagem, quando o que elas fizeram foi dar a esses trabalhadores o mínimo de condições de barganha e de negociação, permitindo recusarem trabalhar em condições de semi-escravização, como faziam antes.
A choradeira dos patrões de que não se encontrava mais ninguém para trabalhar, que todo mundo agora só queria saber de cidade, mascarava o fato de que as pessoas migravam para a cidade em busca de condições mínimas de trabalho, de um trabalho menos pesado e menos mal pago. Até mesmo o acesso maior à educação no meio rural desagradou uma camada de proprietários de terra que eram os herdeiros das relações escravistas e que nunca tiveram interesse em ter um trabalhador qualificado, para não lhe remunerar adequadamente.
Aquelas pessoas que, antes, quando eram despedidos, se atiravam nas estradas em busca de um novo patrão, levando nas costas, em poucos sacos e no interior das redes de dormir, tudo o que possuíam, deixando para trás a mobília que, por vezes, era uma dádiva do patrão, alguns tamboretes, um banco de madeira, com dois pés em forquilha, uma cama de casal de estrado - que iriam servir ao próximo que chegava com suas tralhas de uma jornada, às vezes, de dias, de léguas de distância -, passaram a ter maior dignidade, tendo agora uma conta e um cartão de banco, coisa inimaginável naquele Nordeste de capitalismo sem dinheiro, sem salário e sem capital, aquele Nordeste onde ainda se pagavam as coisas com outros artefatos, em que ainda se calculava o valor de algo em bezerros ou garrotes, em sacas de algodão ou milho. E eu estou falando dos anos sessenta, setenta, oitenta do século XX, não estou falando do Nordeste do meu avô ou do meu bisavô. Mas, muitas outras coisas mudaram em meu Cariri, além das relações de trabalho, hoje monetarizadas, na vida dos trabalhadores, a quem as políticas sociais deram um mínimo de dignidade e permitiram que se tornassem sujeitos mais conscientes de seus próprios direitos. Falarei dessas outras mudanças em outros artigos.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.