A trama dos sons: a invenção de um arquivo sonoro para o Nordeste

Legenda: O curioso é que, a partir da atribuição de dadas sonoridades ao Nordeste, também terminou por se associar dados instrumentos à região
Foto: PEU HATZ/DIVULGAÇÃO

A redução da duração do show do cantor paraibano Flávio José, quando de sua apresentação no palco principal do Parque do Povo, em Campina Grande, na noite do dia 2 de junho, para que a empresa que realiza o chamado Maior São João do Mundo pudesse atender uma solicitação do cantor mineiro Gusttavo Lima, de ampliação da duração de seu show, levantou uma enorme polêmica, trazendo à tona o arraigado regionalismo nordestino.

O próprio Flávio José se valeu do argumento de que esse tipo de discriminação só acontecia com os artistas nomeados de nordestinos. Enquanto Gusttavo Lima recebe a alcunha de o imperador ou o príncipe dos sertanejos, da música dita sertaneja, Flávio José seria o forrozeiro, o tocador da genuína música do Nordeste, que estaria mais relacionada e adequada as festas juninas.

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O curioso nessa discussão é que o Nordeste é uma região normalmente associada ao espaço do sertão, tendo o sertanejo sido tomado como o tipo característico da população que habita esse espaço. Por seu turno, as festas juninas também são normalmente associadas ao meio rural, que também é comumente associada a visão que se tem da vida sertaneja, ela seria camponesa, pastoril, agrícola. Portanto, de início, parece despropositado dizer que um cantor que se nomeia de sertanejo, de o imperador e o príncipe dos sertanejos, seria um estranho, um intruso numa festa dita nordestina e rural, portanto, sertaneja.

O problema dessa discussão é que ela parte de uma visão naturalizada e a-histórica das identidades, como se existisse uma relação natural entre a música feita por Flávio José e o recorte regional Nordeste, como se essa associação não tivesse uma história, como se essa relação estivesse dada a todo momento. Muitos logo argumentariam que a música de Flávio José é nordestina porque o cantor é paraibano, nasceu no Nordeste, ele faz música no Nordeste, ele mora na região, portanto seria naturalmente um artista regional.

Eu perguntaria então: e se ao invés de tocar forró, baião, Flávio José tocasse rock ou funk, fosse um artista, como tantos que existem nas cidades nordestinas, que tocam e compõe a partir de sonoridades que não são consideradas nordestinas, ele seria identificado como artista nordestino? Por que o rock feito pela banda de Fortaleza ou o reggae feito pelo cantor baiano não é música nordestina? Eles não nasceram no Nordeste, não compuseram e tocam na região, não moram nas cidades nordestinas? Por que o baião é nordestino e o rock feito na região, não é? Muitos responderiam, porque foi uma música que nasceu no Nordeste. E eu diria, ledo engano, o baião foi uma música que surgiu na cidade do Rio de Janeiro, fruto da experiência musical urbana vivida pelos seu criador, Luiz Gonzaga.

Claro que poderíamos retornar ao argumento da origem de Luiz Gonzaga, afinal o baião foi criado por um pernambucano, logo seria nordestino, o que nos levaria ao questionamento anterior, por que o mangue beat, movimento musical encabeçado por artistas pernambucanos como Gonzaga, que se valeu de sonoridades que faziam parte da paisagem urbana e cultural da cidade do Recife, que foi todo desenvolvido na região, não é visto como um movimento musical nordestino e a música que fizeram e fazem não é considerada música nordestina? Como reagiriam os críticos da apresentação de Gusttavo Lima no Maior São João do Mundo se o Nação Zumbi ou Fred 04 fossem convidados para se apresentarem no palco principal da festa?

Para aqueles que querem participar de uma maneira mais informada dessa discussão, eu recomendo um livro recentemente lançado pela editora Cancioneiro, da cidade de Teresina, de autoria do músico e historiador Leonardo Carneiro Ventura, intitulado “A trama dos sons: a invenção de um arquivo sonoro para o Nordeste (1910-1950)". Nessa obra se faz a história de como dadas sonoridades e de como dados gêneros musicais foram sendo nordestinizados, foram sendo associados ao conceito Nordeste, a esse recorte regional, desde que ele emergiu na paisagem do país, nos anos vinte do século passado.

Se nem a existência do Nordeste é natural, se mesmo essa região surgiu recentemente na história do país, como podemos achar que sempre existiu e que é indiscutível o que seja uma música, uma comida, uma festa, uma sonoridade, ditas nordestinas?

Precisamos aprender a pensar as coisas historicamente, não cairmos nas armadilhas do discurso da identidade regional, do discurso regionalista, que após inventar a região, que após dar a ela um conteúdo de imagens, temas, sonoridades, manifestações culturais, dar a ela uma memória e uma história, faz esquecer esse processo de invenção para que se pense que a nordestinidade sempre existiu e que a relação entre Nordeste e aquilo que o define é natural e não criado pelos homens e mulheres em dados momentos precisos.

Leonardo Ventura nos faz ver que não é natural que associemos a sonoridade do aboio ao Nordeste, pois aboiar não é um monopólio do tangedor de gado, do vaqueiro nordestino, se aboia em todas as sociedades pastoris do mundo, só que o trabalho dos folcloristas nordestinos, de intelectuais, escritores e artista da região, fez do aboio um ícone sonoro, um signo e traço definidor de uma paisagem sonora regional.

Ele mostra como os livros dos romancistas dos anos trinta, que ainda são grandes referência na literatura brasileira (José Américo de Almeida, José Lins do Rêgo, Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, Amando Fontes), foram fundamentais para a associação das paisagens ditas nordestinas com determinadas sonoridades: o som da roda do carro de boi, o som da moenda da cana, o som de pássaros como o bacurau, a juriti, a asa branca, a acauã, o assum preto, o zurrar do jumento, o som dos chocalhos dos animais, etc.

Ao lermos esses livros vamos relembrando essas sonoridades e as associando a esse recorte regional. Mas não há nenhuma exclusividade regional em nenhuma dessas sonoridades que as pudessem fazer ser naturalmente nordestinas: Minas Gerais, talvez, tenha tido mais carros de boi do que os estados que se tornaram Nordeste; moenda de engenho existe em várias partes do país; animais portam chocalhos no mundo inteiro; jumento, aquele dito nosso irmão por Gonzaga, como ele mesmo lembra, carregou o Salvador na Palestina e não me consta que ele só zurre no Nordeste; os pássaros ditos nordestinos aparecem em outras partes do Brasil e, na verdade, foram nordestinizados por sua presença nas músicas de Gonzaga e de outros artistas chamados de nordestinos.

Luiz Gonzaga foi muito importante na divulgação desse arquivo de sonoridades e por seu enquadramento como sonoridades regionais ao trazê-las para o interior de suas músicas, que eram voltadas para materializar a paisagem sonora do que chamava de sertão, visando atender a demanda saudosa dos migrantes nordestinos que viviam fora da região. Quando grava a composição dos poetas paraibanos Rosil Cavalcante e Raimundo Asfora, Tropeiros da Borborema, ele introduz, por exemplo, o estalar do chicote dos tangedores de mulas, seus gritos e imprecações destinados a fazer os animais se apressarem ou desempacarem; quando grava a composição de Hervé Cordovil, Xaxado, ele traz para o interior da canção o arrastado dos pés dos dançarinos dessa modalidade de ritmo.

Mas antes dele, um arquivo de sonoridades ditas nordestinas, pois colhidas na região, já tinha sido registrado em gravações sonoras pela Missão Artística e Folclórica, que veio a região, no ano de 1938, capitaneada pela musicista Oneyda Alvarenga, sob os auspícios do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, dirigida nesse momento pelo escritor e intelectual Mário de Andrade.

Esse arquivo que hoje se chama Discoteca Oneyda Alvarenga, está disponível para consulta no Centro Cultural São Paulo, que pertence a Secretaria Municipal de Cultura. Essa missão etnográfica veio munida do que havia de mais moderno em tecnologia de registro sonoro, como gravador, para colher o que seriam sonoridades folclóricas, ditas tradicionais, que serviriam, posteriormente, para que se pudesse produzir uma música erudita tipicamente nacional. Eles registram as mesmas sonoridades que Mário de Andrade, em viagem que realizara dez anos antes a região, tentou reproduzir, com pouco sucesso, apelando para o registro em pauta dessas sonoridades, inventando, inclusive, notações próprias para tentar reproduzir , com os recursos que dispunha na época, sonoridades e gêneros musicais que, às vezes, fugiam do que a notação clássica ocidental definia.

Assim como Mário de Andrade fizera, em 1928, perambulando pelas regiões rurais e pequenas cidades, pelas periferias dos grandes centros, acompanhado e adulado por intelectuais e políticos locais, que lhe cediam meios de transporte, alimentação, hospedagem e mesmo os contatos com os artistas populares que dependiam do mecenato desses poderosos para sobreviverem, a Missão de 1938, registrou sob a rubrica de sonoridades nordestinas: cantos de cegos, cocos e emboladas, repentes e desafios, relatos de cordel, reizados, pastoris, fandangos, marujadas, cavalos-marinho, maracatus, caboclinhos, cantos de carregadores de piano, cabaçais, solos de viola. Essas sonoridades já haviam sido referenciadas e associadas a paisagem sonora nordestina no relato de viagem escrito por Mário, que intitulou de “O turista aprendiz”.

O curioso é que, a partir da atribuição de dadas sonoridades ao Nordeste, também terminou por se associar dados instrumentos à região. A viola, que é um instrumento que existe antes mesmo do Brasil existir, passou a ser um “instrumento nordestino”, como acontecerá com o pífano, o zabumba, a sanfona, o fole de oito baixos. O livro de Leonardo Carneiro Ventura vai se referir a esses acontecimentos, bem como aos artistas que já se apresentavam e já gravavam comercialmente antes de Luiz Gonzaga e que apelavam para outras identidades regionais, que serão depois substituídas pela identidade nordestina, com as sonoridades que produziram sendo também nordestinizadas, como é o caso de Zé do Norte, nome artístico de Alfredo Ricardo do Nascimento, cantor e músico paraibano, nascido na cidade de Cajazeiras, no ano de 1908, que chegou ao Rio de Janeiro em 1921, terminou por se tornar um artista do rádio, ingressando para a Rádio Tupi, em 1940, dado o sucesso que fizera ao se apresentar num programa de calouros cantando uma embolada de sua autoria.

O livro se refere também à importância que teve a gravadora e fábrica de discos pernambucana Rozenblit para o registro e propagação de sonoridades ditas regionais e nordestinas, notadamente seu acervo de gravações de frevos e marchinhas para carnaval. Os LPs do cantor pernambucano Claudionor Germano interpretando os grandes mestres do frevo Capiba e Nelson Ferreira fez enorme sucesso e deu projeção nacional e internacional a esse ritmo, que nunca tinha transposto sequer as fronteiras pernambucanas. Fundada em 1954, ela foi a maior produtora nacional de discos de vinil nas décadas de 1950 e 1960, registrando comercialmente, pela primeira vez, sonoridades como maracatus, cocos, pastoris e cirandas. Recomendo a leitura desse livro para aqueles que acham que a música de Flávio José é autenticamente nordestina desde sempre.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

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