O povo gosta é do piseiro: tradição e mudança, a eterna polêmica

Para aqueles defensores da chamada tradição, o que podemos dizer é que o campo cultural e as artes não vivem e nem sobrevivem sem a mudança

Foto: PEU HATZ/DIVULGAÇÃO

Dia 26 de março de 2023, um lindo domingo de sol, depois de um dia de sábado nublado e com muita chuva. No Parque Aza Branca, na cidade de Exu, região do Araripe, no estado de Pernambuco, comemora-se, atrasado, os cento e dez anos de nascimento do cantor Luiz Gonzaga, o Rei do Baião (Gonzagão nasceu no dia 13 de dezembro de 1912). Algumas dezenas de pessoas, sentadas embaixo de dois pés de juazeiro, plantados pelo próprio mestre Lua, assistiam algumas atrações musicais e a dois professores universitários falarem da contribuição do famoso sanfoneiro para a invenção da chamada música nordestina e sobre como ele encarnou em seu corpo e em sua voz essa identidade regional.

A plateia era composta, em sua maioria, por pessoas mais velhas, muitas que conheceram e conviveram com o exuense mais ilustre. Autoridades locais, notadamente aquelas ligadas ao campo cultural, tentavam aproveitar o evento para fazerem a promoção das gestões estaduais e municipais na área da cultura.

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A rivalidade entre as famílias Sampaio e Alencar que, até a década de oitenta do século passado, levou a periódicos assassinatos, ainda pairava, de modo sutil, no ambiente, já que a gestão do Parque Aza Branca está nas mãos de uma ONG ligada a família Alencar, que se queixa do abandono, da não destinação de verbas para a manutenção do parque, por parte da prefeitura do município de Exu, nas mãos da família Sampaio.

Na noite anterior, sábado, dia 25 de março de 2023, a cidade de Exu ficou praticamente deserta, com as poucas casas comerciais fechando mais cedo. A juventude da cidade, responsável pelo movimento noturno, se deslocou, em grande quantidade, para a vizinha cidade de Bodocó, distante cerca de 37 quilômetros de Exu. Nessa cidade estava ocorrendo um dos principais eventos festivos do município: a Festa de Março, que transcorreu entre a quarta-feira dia 22 e o domingo, dia 26. Nos dois primeiros dias aconteceu a chamada Budega do Forró, em que sanfoneiros tradicionais da região se apresentaram (Januário do Acordeom, Joãozinho de Exu, Cosmo Sanfoneiro e Leninho de Bodocó).

Até pelos nomes artísticos adotados, eles buscam representar a tradição do chamado forró pé de serra, de que o pai de Luiz Gonzaga, Januário, lembrado pelo nome do primeiro artista a se apresentar, foi um mítico representante, sendo que, no caso, tocando fole de oito baixos e não acordeom, instrumento que foi introduzido para tocar o forró por seu filho, Luiz Gonzaga (de Taboca a Rancharia, de Salgueiro a Bodocó, Januário foi o maior, segundo cantou seu filho).

Mas as atrações que provocaram o êxodo da juventude exuense, no sábado, 25 de março, não tocavam o forró, o baião, o xote ou o xaxado, que consagraram o famoso filho da terra. Os conterrâneos de Gonzaga se lançaram nas estradas em carros, motos, bicicletas, em micro-ônibus e vans, em busca de ouvir e dançar os novos ritmos que transformaram o forró, ao mixa-lo com elementos da música eletrônica e do funk.

Naquela noite, a juventude da cidade do Rei do Baião, com os mais abastados levando, inclusive, o seu paradão, queria se divertir ao som do “arrocha” do cantor Pablo, do forró-eletrônico de Taty Girl, mas, principalmente, da coqueluche do momento na região Nordeste: o piseiro de Felipe Amorim e, sobretudo, do galã Arthur Locio, que faz a meninada pisar com gosto, notadamente quando ele canta: “Vem me usar, pode me usar, eu sou seu, me leva pro seu quarto”. O piseiro já é uma variação da pisadinha, estilo musical surgido na cidade de Monte Santo, na Bahia, no ano de 2010, ligado a festas de vaquejadas realizadas na zona rural.

Ele traz também elementos do arrocha, da tecnomelody e do eletrobrega. Embora possa ser executado apenas por teclado e voz, costuma envolver instrumentos como a guitarra, o contrabaixo, a sanfona, a bateria, a percussão, o sintetizador, a caixa de ritmos e o saxofone.

Ao contrário do forró, música que convida ao arrasta-pé conjunto de uma dama e de um cavalheiro, com nítidos elementos sensuais e eróticos, um corpo-a-corpo e um suadouro a dois, com beijos no pescoço e arrocho de cintura (o que inspirou a criação do arrocha), o piseiro lembra muito mais o individualismo exibicionista das discoteques, agora generalizado pelas dancinhas no Tik-Tok e no Instagram. O piseiro dá vazão ao narcisismo solipsista que parece tomar conta das sociedades contemporâneas, que antigamente os nordestinos chamavam de “se amostrá”.

É uma coreografia marcada pelo arrastar dos pés (o arrasta-pé relembra o forró), ao mesmo tempo, que se trota ou se pinota, como diriam os conterrâneos, para um lado e para o outro, com as mãos e braços posicionados junto ao corpo (o que remete a passos do funk ou do hip-hop), movimentando a cabeça e a cintura para um lado e para o outro. É essa ênfase no trote, no toque dos pés com o solo, que dá nome ao novo ritmo. Ele tem uma batida mais rápida que a do forró e é marcado pela sonoridade eletrônica, notadamente, pela marcação do ritmo pela bateria digital e pela sanfona (tocada numa velocidade próxima de como era tocado o fole de oito baixos) ou por sonoridade semelhante produzida pelo teclado ou pelo sintetizador.

A ênfase na pisada requer, quase sempre, que o piseiro use botas de couro, o que remete às vestimentas regionais, podendo, no entanto, usar um visual mais moderninho ou mais brega, no restante do modelito.

Naquela manhã em Exu, sob os efeitos da noite passada, os seguidores de Gonzaga se mostravam escandalizados com o fato de que até as músicas do Rei do Baião estavam sendo tocadas em ritmo de piseiro. Um cantor chamado Luiz Poderoso Chefão (nome que mistura a tradição pretensamente encarnada por Luiz e a modernidade cinematográfica e norte-americana do Poderoso Chefão), usando o mesmo chapéu de cangaceiro consagrado por Gonzagão, que visava, com sua indumentária, tornar corpo a própria identidade regional (presente, também, naquela manhã, através de um sósia do mestre Lua, e de uma artista popular, uma cordelista, que se apresenta vestida como Luiz Gonzaga), teria cometido o pecado de gravar em ritmo de piseiro clássicos do Rei do Baião como: “Eu quero Chá”, “Vem Morena”, “O Cheiro da Karolina”. Luiz Poderoso Chefão nasceu Luiz Claudio Nascimento Oliveira Filho, é um DJ, produtor fonográfico e compositor baiano, que tomou a iniciativa de remixar, ou seja, modificar as músicas já gravadas por Gonzaga, misturando os sons de outra forma (alterando o volume de um canal, suprimindo e acrescentando partes a mixagem original, como o novo ritmo, sons de novos instrumentos, como a bateria eletrônica, e outros cacos sonoros, como o próprio nome do DJ, em meio a canção).

Entre a noite e a manhã estava lançada a eterna polêmica entre tradição e mudança, entre permanência e transformação no campo cultural e das artes.

No caso de Luiz Gonzaga, uma polêmica falsa, desde o início, porque Gonzaga esteve longe de encarnar a tradição. Luiz Gonzaga partiu da tradição do chamado forró, encarnada pelo fole de oito baixos de seu pai, Januário, para criar um novo ritmo, o baião, uma criação realizada para atender ao mercado fonográfico e ao mundo do rádio, em que estava engajado. O baião nunca foi uma tradição sertaneja ou regional, foi uma criação realizada por um músico excepcional a partir de suas vivências pessoais e musicais numa grande cidade, como o Rio de Janeiro, onde sobrevivia tocando em seu acordeom variados ritmos internacionais e nacionais como: a polca, a mazurca, o scottish, a valsa, o tango, a marchinha, o samba.

Podemos dizer que o baião já foi um remix daquilo que ele ouvira e tocara, ainda na adolescência, na companhia de seu pai, mesclado com o que ouvira e tocara na região do meretrício no Mangue e, depois, na Rádio Nacional, da qual integrava o casting de músicos.

O baião foi, no final dos anos quarenta e nos anos cinquenta, a grande coqueluche como música de salão, como ritmo dançante, como acontece agora com o piseiro. Da mesma forma que, de forma pioneira, o velho Lua fez uma música ensinando como se devia dançar o baião (da mesma forma que ritmos como o hip-hop, o funk e o afro-reggae dedicam muitas canções a ensinar como se deve dançar esse ritmo), hoje os cantores de piseiro se dedicam a ensinar como se deve dançar a nova música da moda.

Para aqueles defensores da chamada tradição, o que podemos dizer é que o campo cultural e as artes não vivem e nem sobrevivem sem a mudança. A cultura se caracteriza pela constante releitura e atualização do chamado tradicional. A dita tradição se constitui em um arquivo de formas, temas e sugestões estéticas no qual as novas gerações vão buscar os elementos para a criação de formas e estéticas inovadoras. No campo cultural, o que não se renova e não se atualiza tende a morrer.

Mesmo movimentos culturais feitos em nome da preservação da tradição como o Movimento Armorial, encabeçado por Ariano Suassuna, criou formas novas a partir do que nomeava de tradição e a pretexto de trazê-las de volta ou regatá-las (palavra muito a gosto de muita gente no campo da cultura, que sofre o que chamo de síndrome do resgate).

Se a música de Luiz Gonzaga interessa a um DJ, que a remixa e a atualiza no ritmo do piseiro, isso só testemunha a vitalidade das criações do mestre Lua. Se a juventude que acorre em massa para ouvir Arthur Locio, Felipe Amorim, Barões da Pisadinha, Vítor Fernandes, Orlandinho (Rei do Piseiro), também se interessar, apreciar e dançar ao som das músicas do Rei do Baião em ritmo de piseiro, ele e sua criação continuará viva, continuará formando as sensibilidades e subjetividades dessas novas gerações de nordestinos.

Se comparamos a riqueza poética das letras das canções de Gonzaga com as letras compostas pela maioria dos artistas do piseiro, só podemos considerar uma dádiva que essas letras estejam chegando até aos ouvidos dos jovens de hoje, embora possam estar mais concentrados e interessados em acertar e arrasar nos passinhos, nas pisadinhas, nas performances corporais, no exibicionismo nosso de cada dia.

Não adianta querer conter a mudança e as transformações no campo cultural, não adianta querer traçar fronteiras, construir cercadinhos para que se mantenha uma pretensa pureza do que é visto e dito como tradição. O baião nunca foi puro, ele já nasceu de um remix de todas as informações musicais e culturais que chegaram até Luiz Gonzaga.

Creio que, da mesma forma que ele ficou muito feliz de ver o baião recriado e transformado pelos tropicalistas, pela geração de grandes artistas e cantores nordestinos dos anos setenta e oitenta (Ednardo, Zé Ramalho, Fagner, Elba Ramalho, Amelinha, Alceu Valença, Geraldo Azevedo), creio que o velho Lua, se pudesse e a idade desse, ainda entrava na pisadinha, ainda cantaria e se apresentaria ao lado dos cantores de piseiro que, não deixam de homenageá-lo e reconhecer sua obra ao gravá-lo e atualizá-lo.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.