Ambiguidade, delírio e carnavalização: o Lampião de Leandro Vieira

Legenda: Desfile da Imperatriz Leopoldinense no Carnaval do Rio de Janeiro de 2023
Foto: Divulgação/Gabriel Monteiro | Riotur

A escola de samba Imperatriz Leopoldinense, que estava há 22 anos sem conquistar o título principal do carnaval carioca, se consagrou campeã desse ano com o enredo intitulado “O aperreio do cabra que o excumungado tratou com má-querença e o santíssimo não deu guarida”, sobre a figura do cangaceiro Lampião. De autoria do carnavalesco Leandro Vieira, autor da sinopse ou do texto que descreve sumariamente o enredo e responsável por toda a parte plástica do desfile, que inclui a concepção das fantasias, das alegorias e adereços, o desfile da Imperatriz —, embora não tenha fugido inteiramente da repetição de imagens clichês sobre o Nordeste e os nordestinos, apresentou aspectos inovadores que exemplifica como a criatividade de um artista do talento de Leandro Vieira, como a arte é o campo privilegiado para o questionamento do imaginário em torno do Nordeste e dos temas ligados a esse espaço, como é o caso do tema do cangaço.

A mudança nos sentidos e imagens atribuídas a esse espaço só será possível através de uma produção artística crítica e criativa, capaz de questionar as mitologias que giram em torno do conceito de Nordeste.

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O enredo pensado por Leandro, inspirado em cinco folhetos de cordel, parte da exploração da ambiguidade dos sentidos, da ambivalência do personagem central e de toda a realidade que o cercava. O autor do texto e do espetáculo assume de saída que os sentidos atribuídos por nós humanos a toda e qualquer coisa ou personagem, são controversos, são passíveis de serem visto e ditos por perspectivas diferentes.

Leandro Vieira, de saída, rompe com um dos procedimentos fundadores de qualquer mitologia, de qualquer mitificação, inclusive aquela operante em relação ao Nordeste e a chamada cultura nordestina, a pretensão à fixidez e estabilidade dos sentidos.

Coerente com o procedimento da carnavalização, Leandro nos apresenta um Lampião cheio de ambiguidades e ambivalências, um Lampião que habita o imaginário popular, ora como uma figura diabólica, que encarna a maldade, a crueldade, sendo o bandido sanguinário, o ladrão, o estuprador, ora como uma figura que encarna dimensões positivas, até divinas, como a fé, a religiosidade, a generosidade, a valentia, a coragem, o heroísmo.

Podemos dizer que, assim como o personagem Manuel, do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, o Lampião de Leandro Vieira não é de Deus, nem do diabo, ele é apenas humano, demasiadamente humano, não só enquanto viveu, sendo um ser humano complexo e cheio de contradições, como soe ser todos, sujeito a atuar numa realidade terrena contraditória e conflitiva, mas também após a morte, já que sobrevive não como uma alma penada queimando nas profundezas dos infernos - já que foi recusado pelas forças infernais, já que nem o excomungado, temendo concorrência e confusão, o aceitou no reino das trevas -, e nem como uma alma angelical, gozando do maná dos céus - já que São Pedro, o porteiro do paraíso, barrou a sua entrada, com a ajuda de todos os santos, e nem mesmo a interseção ao Padre Ciço lhe valeu o acolhimento na casa do santíssimo – ele sobrevive, ele se eterniza como um personagem da cultura popular, como uma figura do imaginário popular.

O reino de Lampião não é o céu, nem o inferno, Lampião é um ser terreno e, como tal, passível de ser visto e dito de múltiplas maneiras. Lampião que, dada a não aceitação dele no inferno e no céu, tendia a vagar numa espécie de eterno purgatório, como uma assombração, ganha inúmeras encarnações através dos artistas populares, das mãos, dos corpos e das vozes dos homens e mulheres que o mitificam, seja como figura do mal, seja como figura do bem. Lampião se reencarnou no corpo e na voz dos repentistas e do cantor Luiz Gonzaga, que fez do chapéu que ele idealizou para seu bando, um símbolo de nordestinidade; ele renasceu nas figuras de barro de Mestre Vitalino, ele se tornou personagem nos versos do poeta Patativa do Assaré; ele se tornou narrativa de assombro, de tirar o sono por mais de mês na letra dos cordelistas Rodolfo Coelho Cavalcante, José Pacheco e Moreira de Acopiara e na narrativa carnavalesca de Leandro Vieira, sua mais recente reencarnação.

Lampião, Carnaval
Foto: Divulgação/Alex Ferro | Riotur

Além da exploração das ambiguidades e das ambivalências, a carnavalização do personagem passa por, através do riso, da ironia, relativizar dados sentidos atribuídos ao personagem, pretensamente homenageado pelo enredo. Me parece que o carnaval da Imperatriz foi mais uma homenagem a Dona Expedita Ferreira da Silva, a filha de Lampião, a mulher nascida do pretenso símbolo da macheza, da masculinidade exacerbada nordestina, do que propriamente a Virgulino Ferreira da Silva.

Homenagear uma mulher e não um homem num enredo sobre Lampião foi um gesto politicamente muito significativo e que passou batido para a maioria dos analistas, fixados em seu parentesco com o Rei do Cangaço.

Leandro de maneira inteligente e sutil relativiza a imagem do herói nordestino, do cabra-macho, ao tratá-lo na chave do humor e do delírio. O cangaceiro que é sobretudo pensado na chave da seriedade, do realismo mais rasteiro, ganhou no carnaval da Imperatriz a leveza dos personagens do teatro popular, do mamulengo, tornou-se mais uma figura do realismo-fantástico, uma figura entre o trágico e o cômico, com toques de ópera-bufa, do arquivo de personagens farsescos e ambíguos, como o Chicó e o João Grilo, do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna (não é mera coincidência que a morte comparece no enredo figurada pela Onça Caetana, figuração consagrada pela obra Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta escrita por Ariano).

Some-se a inovadora abordagem do tema, as inovações estéticas e figurativas introduzidas pelo carnavalesco, ao longo do desfile, que também contribuem para um questionamento do imaginário ligado a região, ao tema do cangaço e do próprio Lampião. Embora a paleta de cores, no geral, tenha obedecido ao que é costumeiro em enredos que abordam temáticas ditas nordestinas, com a prevalência de cores foscas, terrosas, como o ocre, o amarelo, o marrom, o cinza, com o verde sendo reservado penas para os mandacarus, para os cactos, Leandro nos apresentou, ao longo do desfile, a medida que a temática da cultura popular apareceu, uma variedade maior de cores (a roupa da bateria, por exemplo, era de um vermelho vivo belíssimo), assim como a roupa de Onça Caetana da rainha da bateria (Maria Mariá).

Desfile da Imperatriz Leopoldinense sobre Lampião
Legenda: Desfile da Imperatriz Leopoldinense
Foto: Divulgação/Tata Barreto | Riotur

As alegorias foram o ponto alto da criação de Leandro, desde o elemento cênico da Comissão de Frente, que remetia a um mercado popular de venda de cordéis, que se transformava num palco de teatro de bonecos, no inferno e no céu, figurado por um nicho de imagens de santo. O carro abre alas, que remetia a uma entrada triunfal do bando de Lampião em uma dada localidade, além de figurar a tropelia, a confusão quase infernal do episódio, figurava de maneira genial o pavor que o evento causava, apelando não para o olhar humano, mas para o olhar dos animais, eram bois apavorados, de corpos contorcidos, fugindo dos cavalos em que os cangaceiros estavam montados, que sintetizava o medo que o personagem e seu bando infundiam, aonde chegavam.

No carro que se referia ao dia 28 de julho de 1938, a cena da degola do bando foi figurada de modo a conferir leveza e sobretudo dignidade aos personagens. Utilizando-se da referência ao teatro de bonecos, Leandro reencenou e ressignificou esse episódio de barbárie e de extrema violência, uma cena de vingança mórbida e abjeta, retirando das cabeças degoladas seu aspecto macabro, tornando-as rosadas cabeças de bonecos, que se moviam ao sabor do balanço do samba; palhaços titereteiros manipulavam pequenas cabeças ensanguentadas, como se tudo aquilo fosse apenas uma brincadeira quase infantil. Mas, para mim, o carro mais inovador e criativo, em relação a figuração de temáticas ditas nordestinas foi aquele que representava a tentativa do cangaceiro entrar no paraíso.

Desfile da escola de samba imperatriz leopoldinense
Foto: Divulgação / Ismar Ingber | Riotur

O carro trazia logo a frente uma espécie de avião alado, seguido por uma série de balões coloridos, que sugeriam as possíveis alternativas de meio de transporte que o cabra do sertão teria tomado para chegar as portas do santíssimo. Como sabemos o Nordeste não é associado a modernidades tecnológicas. Foi uma ruptura bastante interessante com um imaginário sobre o sertão onde normalmente quem é rico anda em burrico e quem é pobre anda a pé, lá não se sabe se automóvel é homem ou mulher. Tomando o mundo delirante e, ao mesmo tempo, ambivalente e cômico do cordel como pretexto, como texto prévio, Leandro Vieira pôde realizar com maestria aquele gesto que, em artigo recente, eu defendia ser necessário em relação a esse imaginário em torno do Nordeste, do nordestino e da chamada cultura nordestina, que é o gesto da carnavalização, com o uso das armas da ironia, do riso, do deboche, da ambivalência, para questionar e desestabilizar os sentidos dados e consagrados em relação a esse espaço, suas gentes e suas produções culturais.

Mesmo ainda fazendo muita concessão à estereopia (o texto da sinopse está cheio de lugares comuns, de imagens clichês, inclusive sendo vazada num pretenso nordestinês), Leandro Vieira mostra que é, hoje, um dos artistas mais capazes de utilizar a central de distribuição de sentido, a plataforma potente de divulgação de ideias e valores que é o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, para questionar as imagens preconceituosas e clichês, o imaginário cristalizado acerca da região Nordeste, de seus habitantes e da produção cultural que aí se realiza. É preciso que em algum momento as escolas de samba descubram que o Nordeste não é só cangaço, seca, coronel, beato, artesanato, chita, renda, sanfona e zabumba, chapéu de couro e alpercata, xaxado e repente, que tudo isso é importante, mas a região hoje vai muito além desses temas, desses tempos, nos quais é permanentemente alojada e paralisada.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

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