No meu Cariri II: memórias de um Nordeste que quem tem menos de trinta anos não sabe que existiu

Foto: Wandenberg Belem

No meu Cariri, de vinte anos atrás, a preocupação constante de pobres e abastados era com a seca e com o abastecimento de água. Região sujeita a estiagens periódicas, viver no Cariri paraibano era estar sujeitos às mudanças cíclicas da natureza, às variações climáticas. Ao findar cada ano, a pergunta que todos se faziam era como seria o ano seguinte, se ele seria bom de inverno (inverno no Nordeste não é propriamente uma estação do ano, mas o período em que ocorrem chuvas) ou se ocorreria mais um ano de seca.

Era comum que os camponeses e proprietários de terra ficassem observando sinais na natureza e no céu, tentando adivinhar como se comportaria o clima no ano vindouro. Se as formigas estivessem construindo bocas nos formigueiros, ou seja, protegendo suas entradas com espécies de canudos trançados com gravetos, era um bom sinal de inverno. Se os cupins também estivessem construindo proteções para os cupinzeiros, também era promessa de inverno farto. Se havia uma espécie de alo, de arco ao redor da lua, também era motivo de espera de muita chuva.

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A formação de nuvens era observada com muita atenção, mesmo a maior ou menor umidade no vento era bom augúrio. Já a ocorrência de constantes redemoinhos de vento e poeira era mal presságio, assim como a migração dos pássaros e, principalmente, a ausência de chuva no dia 19 de março, dia de São José.

Muitos, como meu pai, adquiriam os chamados almanaques de ano, espécie de folhetos que traziam as previsões para o ano seguinte, o melhor período para o plantio e a colheita e inclusive as previsões astrológicas para cada signo. Eles eram adquiridos nas feiras livres de cidades como Campina Grande, Caruaru e Juazeiro do Norte.

Podemos dizer que, no Cariri, e no sertão nordestino de um modo geral, a seca deu origem a toda uma cultura, modos de existência que, não necessariamente, eram os mais adequados para a convivência com o fenômeno. O fato de a vida da maioria dos moradores do sertão estar baseada em atividades dependentes da ocorrência de chuvas regulares já constitui um dos motivos da miséria e da precariedade da vida sertaneja.

Numa área semiárida, a maioria dos pobres e remediados viviam da prática de uma agricultura de subsistência (plantação de feijão, milho, fava, melancia, abóbora, melão), de baixa produtividade, feita com as técnicas mais tradicionais (à base do plantio e colheita feitos à mão, com o uso da enxada e raramente do arado). Lavouras muito frágeis, que não resistiam a um mês sem chover, murchando, secando e pondo a perder as sementes estocadas com muito sacrifício.

Quando não estavam plantando, quase sempre em terra alheia ou em pequenos sítios de suas propriedades, os pobres estavam trabalhando para os outros, fazendo as mais variadas tarefas: ajudando na colheita ou plantio, fazendo cercas e currais, fazendo e limpando açudes e barreiros, limpando ou brocando mato, ajudando no trato do gado. A remuneração, quando havia, era muito baixa, fazendo com que a seca levasse essas pessoas para a miséria quase absoluta.

Já os proprietários de terras mais abastados viviam da pecuária e do plantio do algodão, que também demandava a ocorrência regular de chuvas, pois também praticavam uma agricultura de subsistência, de onde saia a palha e as ramas com que alimentavam o gado, o milho com que alimentavam as aves e animais como jumentos e cavalos. A pecuária era extensiva, com a maior parte do gado chamado de solteiro (aquele que não estava parido e fornecendo o leite) vivendo a solta em cercados onde dependiam de pastagens e de ramas para poderem se alimentar e da água de barreiros para beber.

A vacaria que estava parida e que era fornecedora de leite era mantida em currais ou em cercados próximos da casa da fazenda, tendo que ser alimentada com ração (palma forrageira, farelo ou torta de semente de algodão comprados na cidade, capim e sal) quando do período de estiagem, consumindo praticamente o lucro que era conseguido com a venda do leite ou do queijo nas feiras mais próximas ou a atravessadores (os leiteiros, que quase sempre possuíam caminhonetas para o transporte do produto até uma fábrica de queijo ou de leite pasteurizado).

Não era raro, em período de estiagem, os proprietários terem que se valer das chamadas comidas bravas para alimentarem o gado, com a queima da macambira e dos cactos em geral (cardeiro, facheiro, mandacaru) e em secas mais prolongadas verem as vacas caírem de fraqueza e de fome, muitas tendo que ser mantidas de pé com espécies de tipoias de couro suspensas em estacas de madeira. O campo se enchia de ossadas de rezes mortas de fome, de disenteria pelas comidas inadequadas, de doenças oportunistas.

O abastecimento de água para os humanos também se tornava um grande drama. Bebia-se a água de barreiros e açudes que, à medida que iam secando, ficavam com as águas cada vez mais barrentas, sujas, inclusive porque para elas também acorriam os animais (vacas, bois, bodes, cabras) que, muitas vezes, não só as baldeavam (ou seja, as agitavam ao nelas entrarem fazendo a lama do fundo subir), como defecavam em seu interior.

Essa água era transportada pelos mais pobres, em potes e latas suspensas nas cabeças, protegidas por rodilhas de panos. Muitas vezes a água era transportada por léguas de distância, por meses seguidos, quando se via ela ir se tornando pura lama fétida. Os mais abastados tinham que transportar a água usando ancoretas (recipientes feitos de madeira e/ou borracha) ou tambores, usando animais, notadamente jumentos, e/ou carroças puxadas a burro. Essa água era derramada e armazenada em formas de barro ou em recipientes de alumínio mantidos nas cozinhas e corredores das casas. Os mais pobres a mantinha em potes ou pequenas formas onde enfiavam todos a mesma caneca quando queria beber a água ou mesmo quando ofereciam água ao visitante.

Para se dar água aos animais, muitas vezes, era preciso deslocar-se por léguas, todos os dias, tangendo o rebanho, em busca de uma cacimba ou de um açude que ainda estivesse fornecendo água. Como muitos poços e açudes eram perfurados e construídos pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) oficialmente eles eram públicos e mesmo ficando na propriedade de alguém, o proprietário não poderia negar água a ninguém, devendo construir passagens e acessos até a fonte de água.

Muitas vezes, durante minha infância e adolescência, andei quilômetros a pé, tangendo o rebanho de vacas e os cavalos e jumentos da fazenda (eu detestava montar a cavalo, preferia andar a pé) para beberem água em uma cacimba, que ficava na terra de parentes de meu pai. Lá, tínhamos que, com o uso de uma lata, retirar água do poço e encher cochos de cimento onde os animais bebiam. Não raro chegávamos no mesmo momento que rebanhos de outros fazendeiros da redondeza chegavam, misturando os animais, com alguns mais fortes impedindo os mais fracos de beber, causando brigas e correrias.

Pavorosas eram as brigas entre os touros das fazendas, muitas vezes tive que tentar apartar brigas do touro lá de casa, tentando levá-lo de volta, com ele e o rival quebrando os matos, levantando muita poeira, dando berros ferozes assustadores. Também, muitas vezes, os jumentos que estavam transportando água para a casa ou para dar aos bezerros, que não aguentavam fazer a caminhada, desembestavam atrás de uma jumenta no cio e, ao montarem nela, derrubavam toda a carga, para nosso desespero.

Os açudes e barreiros eram os recursos existentes para armazenar água. Normalmente eram construídos pelos próprios proprietários de terra com o emprego de um mestre de obras e de empregados que faziam a escavação e o soerguimento da barragem, da barreira de terra, também chamada de baldo ou bardo. Eles eram construídos onde na época das chuvas corriam pequenos rios ou riachos. Os açudes maiores, construídos pelo poder público, quase sempre se destinavam ao abastecimento das populações urbanas através da construção de sistemas de distribuição de água. Esses açudes e barreiros costumavam secar com no máximo um ano de uso, dada a enorme evaporação, dadas as altas temperaturas na região e o uso feitos por homens, mulheres e animais. Os poços e cisternas eram mais raros e quase sempre pertenciam as pessoas mais abastadas.

Os poços, muitos deles abertos pelo DNOCS, tendiam a fornecer uma água salobra ou muito salgada, alguns com a água sendo recusada inclusive pelos animais. A salinidade das águas subterrâneas e do próprio solo em várias áreas do semiárido nordestino continua sendo um obstáculo a uma política de irrigação.

As cisternas se destinavam a recolher a água das chuvas, quando elas aconteciam, aparando a água que caía no telhado das casas, usando bicas de alumínio colocadas na beirada desses telhados. Por ser água mais cristalina e doce era destinada ao consumo doméstico: beber e cozinhar. Elas eram feitas de cimento e tijolos e por seu custo se tornava proibitiva para a maioria da população do semiárido, pois além do material tinha-se que contratar a mão de obra dos pedreiros e cavadores da fundação da cisterna. A grande mudança que se assistiu, nas últimas décadas no sertão, foi protagonizada, justamente, pelo programa Água para Todos, criado no primeiro governo Lula, que construiu mais de um milhão de cisternas no semiárido nordestino, democratizando o acesso a água, já que o monopólio da terra no Nordeste foi acompanhado do monopólio da água, com o acesso a esse bem precioso sendo utilizado como arma de barganha política.

Se trocava água por voto no Nordeste, já que, no momento das secas, o acesso aos açudes e poços privatizados indevidamente e ao abastecimento público através de carros pipa era subordinado ao comportamento político de cada um. Adversário político ou eleitor da oposição não recebia visita de carros pipa e muito menos autorização para pegar água na fazenda do coronel de plantão.

Construídas em sistema de mutirão, com o beneficiário fornecendo a mão-de-obra para a escavação da base que iria receber a cisterna pré-moldada, foram construídas ao lado de praticamente cada casa do meio rural nordestino milhares de cisternas destinadas a armazenar água para o consumo humano e animal. Foram distribuídas e instaladas outras 500 mil cisternas, de material plástico, visando armazenar água para o plantio de hortas e pomares, para a irrigação de pequenas produções e para a alimentação e manejo de animais destinados a comercialização. Essa foi outra revolução silenciosa, que acabou com as cenas de pessoas caminhando por léguas com potes e latas de água na cabeça. Com a cena de pessoas a chafurdar na lama ou na areia de fundos de barreiros ou rios tentando encontrar um fio de água para beber.

Aqueles que sabem manter limpos os telhados e as bicas, garantir a integridade delas, pois para isso receberam as devidas instruções, quando da instalação da cisterna, podem agora aguentar um tempo mais longo de estiagem sem ficar sem água para beber e cozinhar. As cisternas fazem parte de mudanças fundamentais no estilo de vida de quem vive no semiárido para que possam com ele conviver, sem mais cair no conto do vigário do discurso da seca, aquele que sustentou por mais de um século os privilégios das elites nordestinas, que prometiam acabar ou solucionar com as secas, o que seria o mesmo que prometer acabar com o gelo na Sibéria e com o deserto no Saara.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

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