'Me dá minhas joias aí': a rapinagem como lógica colonial

Foto: Euvillazio QUEIROZ / AFP

O antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro afirma que as culturas das comunidades indígenas amazônicas, em sua maioria, se regem pela lógica da predação. O antropólogo francês Philippe Descola encontrou a mesma lógica cultural nas tribos que estudou na Amazônia equatoriana. 

As relações dos humanos com a natureza, com os outros humanos e com os espíritos seriam regidas pelas ideias de devoração e de incorporação. Os rituais antropofágicos, que tanto horror e repulsa causaram aos europeus quando chegaram as terras americanas, faziam parte dessa lógica de devorar e, ao mesmo tempo, incorporar os atributos do guerreiro inimigo, vencido e aprisionado, como a valentia e a coragem. 

A predação, que preside a interação entre os animais predadores e suas presas, foi tomada como um modelo geral de comportamento do mundo, de leitura e significação de todas as interações com as entidades naturais e sobrenaturais que constituiriam o mundo dos humanos. Segundo essa maneira de pensar, todas as coisas fazem parte das outras, as constituem, pois são devoradas, deglutidas e transmutadas nas próprias carnes do devorador.

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A palavra latina praedere da qual advém a palavra predar remetia ao gesto de captura e de ingestão de uma presa por um predador, havendo um vínculo natural entre eles, uns estando destinados a alimentar e ser subsumido pelo outro, a vida de uns estando na dependência da devoração do outro. 

Para muitos povos indígenas amazônicos a natureza e a própria vida social se constituem por cadeias de capturas, por relações e vínculos necessários entre devoradores e devorados, entre aquelas entidades que estão fadadas a deglutição e aqueles entes que estão destinados a realizar a deglutição, embora essas posições sejam intercambiáveis na cadeia, ou seja, quem devora também pode ser devorado, o predador numa dada situação será a presa numa situação seguinte. 

A lógica da predação apresenta essa característica da reversibilidade, da alternância de posições, uma espécie de lógica do jogo, da sorte, regida por um certo princípio da incerteza, pois a qualquer momento quem sai para a caça pode terminar sendo caçado. Não há unilateralidade nas relações e nem posições ou hierarquias fixas, ao mesmo tempo que, cada ser deglutido, de certo modo, continua a viver ao dar vida a quem lhe devora, ao se ver digerido e transformado na carne e no espírito do predador. 

As relações de força se distribuem equitativamente por toda a cadeia e elas são reversíveis, pois aquele que está em posição de força numa dada situação, na próxima pode estar ocupando o lugar de menor força.

Quando os colonizadores chegaram as Américas eles trouxeram e implantaram uma outra lógica nas relações econômicas, políticas, sociais e culturais que passaram a ter com os povos originários, com a natureza americana e entre eles mesmos: a lógica da rapina. A rapina é presidida pelo ato de tomar à força algo ou alguém, de levar à força algo que inicialmente não lhe pertence. 

A rapina é filha dileta da lógica da guerra, é a razia praticada após a derrota de um inimigo, ela é o gesto final de demonstração de força, de afirmação sem peias de um poder conquistado no campo de batalha. A palavra rapina advém da palavra latina rapere que remetia ao botim da guerra, a algo que é adquirido ou tomado através do uso da força e remete também a prática do roubo. 

Ela deu origem a palavra latina rapidus, que era aquele que era levado à força, ou seja, aquele ser humano que era submetido a escravização após ser derrotado em uma guerra ou mesmo quando era vítima de sequestro. A implantação da escravização, como forma prevalecente de dotar as economias coloniais americanas da mão-de-obra necessária para torná-las produtivas, obedece a essa lógica da rapinagem. 

Para que milhões de africanos chegassem todos os anos as Américas, para serem submetidos a escravização, os povos e civilizações africanas foram vítimas da rapina de preadores e traficantes de “peças negras” por cerca de quase cinco séculos.

Duas outras palavras são aparentadas da palavra rapina e elas também são muito significativas para entendermos a lógica cultural, a lógica estrutural que ordenou o sistema colonial entre nós: as palavras rapto e rapaz. 

A rapina, ou seja, tomar alguém a força implica, justamente, a realização do que nomeamos de rapto. Os indígenas foram sistematicamente raptados para serem vendidos e escravizados. Mas, na estruturação da ordem colonial nas Américas, uma empresa majoritariamente masculina, o rapto foi padecido, também, pelas mulheres indígenas, tomadas à força como objeto sexual. 

Muitos dos mestiços que passaram a formar, paulatinamente, o que viria a ser o povo brasileiro, nasceram do rapto de mulheres indígenas pelos colonizadores brancos seguido pela prática do estupro, que é o tomar á força as carnes do outro, que é se apossar com o uso da força das carnes alheias. 

A palavra rapaz surge desse universo semântico, justamente pelo fato de que na sociedade romana antiga a ideia prevalecente era a de que o homem jovem tomava para si uma esposa ou as mulheres através da demonstração de força que aquele povo guerreiro tanto valorizava. 

Se ainda hoje falamos em conquistas amorosas é porque ainda associamos as relações entre os sexos e os gêneros ao universo da guerra e da batalha, onde os homens, aqueles definidos como masculinos devem ser os conquistadores e as mulheres e aqueles definidos como seres femininos devem ser as conquistas, com direito a submissão e invasão.

A rapina, ao contrário da predação, implica o uso unilateral da força. Na rapinagem é como se a presa fosse sempre a mesma, nunca podendo ocupar o lugar de predador. Não há reversibilidade nas relações de rapinagem, a rapinagem é um jogo de cartas marcadas.

Na rapinagem há uma clara apartação e hierarquia entre o agente e o paciente do ato de rapina. O ato de rapinar é a reafirmação da diferença de força, é um ato que materializa a desigualdade e desnível das forças em conflito. 

Se na predação há mistura, na rapina mesmo a mestiçagem está serviço da manutenção da distância e da diferença entre aqueles envolvidos no gesto de apossamento. A rapina é irreversível, ela perpetua diferenças e hierarquias, ela reafirma pretensas superioridades ditas naturais. 

Quem é raptado, quem é rapinado é desapossado de si mesmo e de tudo que possui ou o singulariza, ele poderá ser marcado, ferrado, mas jamais deixará marcas em seu raptor.

A sociedade brasileira, as elites brasileiras, herdeiras dos colonizadores portugueses foram formadas pela lógica da rapina. O colonizador via a colônia como sendo aquela terra outra, terra estranha para onde vinha enriquecer o mais rápido possível. 

O escritor paulista, Paulo Prado, em seu livro Retrato do Brasil, vai dizer que uma das forças motrizes da colonização foi a cobiça. A cobiça é esse desejo sem limites de se apossar, de possuir, de ter as coisas. 

Para Prado aquele que é movido pela cobiça nunca se sacia, nunca está satisfeito, por isso mesmo está sempre insatisfeito com o que tem, buscando ter cada vez mais, sendo movido por esse desejo imparável de fazer de tudo sua propriedade. A ganância seria o sinônimo perfeito para a cobiça, essa ânsia de tudo ter, a vontade exagerada de tomar tudo que lhe agrada ou interessa para si. 

O ganancioso não deixa lugar para a vontade do outro, ele quer exclusividade no possuir, no deter. O Brasil é um país infelicitado, a mais de quinhentos anos, por elites que se julgam brancas e que se acham no direito de tudo possuírem, de tudo se apossarem, até mesmo daqueles corpos tidos com inferiores, das carnes pretas, pardas e amarelas. 

Nossas elites agem com o país como se ainda fossem colonos, como se não sentissem essa terra como sendo sua, como se fosse uma terra estranha e exótica da qual se quer apenas retirar tudo o que for possível, o mais rápido possível, para poderem retornar as suas terras imaginárias e de apreço, que estão sempre fora daqui (no momento elas se localizam entre a Flórida, a Itália e os Emirados Árabes).

O episódio das joias dadas como presentes, pelos xeiques árabes, ao ex-madatário do país e para sua esposa, que envolve, possivelmente, a rapina de nosso petróleo com a venda

a preço de banana da refinaria Landulfo Alves, na Bahia, é mais um evento em que se explicita a prevalência, ainda em nossos dias, da lógica da rapinagem, trazida pelos colonizadores. 

A estrutura fundiária brasileira, raiz de muitas de nossas fortunas, advém, em grande medida, da rapina dos territórios ocupados pelas comunidades indígenas. Derrotados e apreados, os indígenas viram suas terras serem tomadas e apropriadas, bastando uma simples graça ou mercê de um rei europeu que se tornou dono de todas as terras, sem mesmo aqui pisar (maior rapinagem produzida na história).

Assistimos, nos últimos dias, todas as rapinagens nacionais virem à tona, constatamos que a lógica da rapinagem ainda preside a nossa ordem social e está encrustada nas subjetividades de nossas elites (a corrupção, o roubo generalizado, o chamado jeitinho brasileiro, são versões com caráter popular da lógica da rapinagem, ser esperto e se aproveitar do outro, lesar o outro, considerado mais fraco ou menos esperto é esporte nacional). 

Desde os seguidos episódios de trabalhadores escravizados (em vinícolas e plantações de arroz, no Rio Grande do Sul, no corte da cana em Goiás, no serviço público em Joinville) até o badalado escândalo dos presentes dado por país estrangeiro, de valor sem precedentes na história da diplomacia mundial, que deveriam ser para o Estado brasileiro, sendo apropriados privadamente por Jair Bolsonaro, que o admite com a candura de uma freira no oratório, mostram que a rapinagem do país e do Estado ainda é uma tônica entre aqueles que ocupam cargos públicos e que representam parcelas das elites brasileiras. 

As seguidas carteiradas dadas por agente públicos, por membros das Forças Armadas, na tentativa de se apossar de bens ilegalmente introduzidos no país; o escândalo do orçamento secreto; o ministro que visita cavalos com o uso de dinheiro público; os pastores que se apropriavam privadamente de verbas da educação e que as trocavam por barras de ouro; a invasão dos territórios indígenas para a prática do garimpo e do desmatamento ilegal; a invasão de terras públicas, a famosa grilagem, pratica tão comum na história do país, obedecem a lógica da rapina, da razia, do uso da força do dinheiro, do poder e das armas para se apossar do que não lhe pertence, para tomar para si o que é de uso público ou pertence a outrem. 

É a lógica do poder do mais forte, que toma posse e faz propriedade dos corpos e das coisas daqueles considerados menores, mais fracos, mais pobres, ou daquilo que é público e, conforme essa lógica, é de ninguém, ao invés de ser de todos. Porque na rapina o outro não importa, o outro, se atrapalha a razia, deve ser eliminado, perseguido, trucidado, nem que seja em sua honra.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

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