O senhor de escravos em nós: o vinho amargo da história pátria

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Há um senhor de escravos habitando a subjetividade de muitos brasileiros. Há um desejo de escravização do outro, do considerado inferior, transmitido pela educação de gerações, no país que foi o último a abolir o vergonhoso comércio de carne humana, cujas elites intelectuais produziram uma visão idealizada e adocicada do martírio cotidiano de milhões de homens e mulheres pretos. 

Habita nosso inconsciente coletivo a fantasia senhorial do poder desabrido e sem peias sobre o corpo do outro, a vontade de servidão e de serviço sem limites daqueles considerados diferentes, fracos, subumanos. 

Uma boa parcela dos brasileiros que se consideram brancos e, por isso, superiores, acalentam sonhos, muitas vezes não explicitados, de ter a sua disposição um outro em quem possa descarregar suas frustrações, seus ressentimentos, suas raivas, seus ódios. Alguém de pele escura, de pele parda a sua disposição para descarregar as suas pulsões de morte, a sua agressividade, os seus desejos destrutivos.

Quando Gilberto Freyre, um dos intelectuais que edulcoraram a escravidão e que tinha por ela uma indisfarçável nostalgia, utiliza o par de categorias psicanalíticas sadismo e masoquismo para pensar as relações entre senhores e escravizados, ele acerta, por um lado, ao descrever o desejo sádico dos senhores e senhoras, que gozavam infligindo humilhação, dor e sofrimento públicos a seus escravizados e erra ao atribuir a eles o desejo masoquista, como se eles se submetessem a sevícia dos senhores e senhoras de forma voluntaria e disso retirassem prazer. 

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O sociólogo que realizou o primeiro Congresso Afro-Brasileiro, em 1934, que contribuiu para o reconhecimento da importância dos afrodescendentes para a formação histórica e cultural brasileira, faz com que uma relação de total assimetria de poder, uma relação de poder autoritária e autocrática, se transformasse numa relação pretensamente simétrica, onde cada agente ocuparia a posição de subjugador e subjugado por decisão própria.

No Brasil contemporâneo, onde todo o conteúdo recalcado de nossa história parece ter vindo a tona, onde as estruturas mais profundas de nossa ordem social, inclusive do ponto de vista subjetivo e inconsciente, vieram a superfície, numa espécie de encontro com o espelho, um processo quase psicoterapêutico de assunção dos fantasmas e dos traumas nacionais, o senhor de escravo em nós se manifesta, não apenas através de falas orgulhosamente e militantemente racistas e depreciadoras das chamadas “raças inferiores”, da perseguição política, até com a ameaça a vida, dos ainda poucos negros e negras que ascendem a cargos públicos, mas através da prática concreta da escravização de seres humanos: de empregadas domésticas, de trabalhadores no campo e nas cidades, em setores empresarias tidos como os mais modernos. 

A fúria contra os direitos trabalhistas, o golpe de Estado perpetrado contra a política de cotas raciais nas universidades e nos serviços públicos, a política governamental de destruição de direitos dos indígenas, dos quilombolas, dos camponeses sem terra, perpetradas pelo governo fascista dos últimos quatro anos, são a materialização desse desejo de escravização, das fantasias senhoriais que continuam a habitar as subjetividades, a consciência e o inconsciente de muitos cidadãos e cidadãs de bem nesse país. 

O bolsonarismo é uma expressão de formações subjetivas marcadas pelo desejo de domínio absoluto sobre o outro, de submissão completa daquele considerado diferente. A escravização de seres humanos, a base da construção da ordem social brasileira, traz em seu bojo o desejo de poder sem limites, o autoritarismo, o fascismo que é encarnado hoje pelo bolsonarismo, como já foi e ainda é pelo integralismo, pelo neonazismo.

O discurso do vereador de Caxias do Sul, Sandro Fantinel, não traz em si mesmo nenhuma novidade. Embora, no contexto político atual, de crescente rejeição de discursos racistas e dos preconceitos de cunho regional, seu discurso tenha tido grande repercussão, ele o proferiu em plena tribuna da Câmara de Vereadores justamente porque, para ele, era muito comum dizer o que estava dizendo. 

Na cidade onde mora, discursos como o dele circulam cotidianamente, ele possivelmente cresceu ouvindo as barbaridades que disse nas reuniões de família. O que disse lhe parecia tão naturalizado, tão normal e óbvio que, ao ver a repercussão negativa que seu discurso provocou, foi que se deu conta que já não se pode dizer certas coisas, hoje, impunemente. 

Nomear os nordestinos através do conceito estereotipado de “baiano”; pensar os baianos como gente inferior em relação aos sulistas, aos gaúchos, por eles serem negros e aqueles pretensamente brancos (as imagens do limpo e do sujo usadas por ele tem claras conotações raciais, aliadas a traços pretensamente morais: os baianos seriam duplamente sujos, na pele, por serem negros ou pardos e na subjetividade, por serem imorais, preguiçosos); julgar que os baianos é uma gente preguiçosa (gente preguiçosa que, curiosamente, deixam seus lares, atravessam quilômetros de distância em busca de trabalho, sem nenhum direito garantido, que se submetem a condições degradantes na esperança de ganhar o pão de cada dia), que vive de tocar tambor a beira-mar, não são imagens ou estereótipos inventados pelo brilhante edil de Caxias do Sul. 

Ele não foi o primeiro e, infelizmente, não será o último a fazer a defesa da escravidão entre nós. Com isso não quero minimizar seu gesto repulsivo, mas apenas chamar atenção para o fato de que ele não é um caso isolado, que ele não é apenas um indivíduo fora do normal. 

Infelizmente não, ele, sua subjetividade, sua maneira de pensar, seus valores, são expressão de uma vida social e cultural, são produto de uma história de longa duração e são estas estruturas que devem ser atacadas e combatidas, sem deixar de se punir o caso em apreço.

As elites proprietárias brasileiras, em grande percentual, notadamente aquela que se considera branca (e no Brasil dinheiro embranquece, tornar-se branco, apagar os estigmas da negritude é uma das motivações para se enriquecer, deixar o povinho, a gentalha, nem que seja se casando com alguém pertencente a uma família de bom sangue, de estirpe sempre foi um objetivo de vida de muitos), são senhores e senhoras de escravos em potencial. Nossa sociedade é atravessada por desejos de ser servido e pelo servilismo de boa parcela das nossas camadas populares. 

Dificilmente veremos numa sociedade europeia as cenas que cotidianamente presenciamos no Brasil: o vendedor de sapatos a calçar e descalçar os pés malcheirosos dos clientes; os garçons e garçonetes atendendo pessoas que os chamam com um assovio, como se se tratassem de animais; os salamaleques e curvaturas dos atendentes de hotéis, dispostos a levar até o quarto as mais pesadas bagagens; os carregadores que se precipitam em qualquer rodoviária brasileira disputando o transporte dos pertences dos passageiros; a figura do motoqueiro que hoje leva qualquer coisa para alguém que não pode conspurcar sua pretensa superioridade ou nobreza carregando pacotes. 

O brasileiro e a brasileira adoram ter serviçais, pagando o menos possível a eles, em muitos casos, como no caso das vinícolas de Caxias do Sul (Salton, Aurora e Garibaldi) pagando pouco por eles (reinserindo as relações escravistas no país) a atravessadores, gatos, empresas de terceirização de mão-de-obra.

A escravização de pessoas nunca deixou de ser uma realidade na sociedade brasileira, notadamente no meio rural e nem sempre em regiões remotas da Amazônia. O trabalho doméstico, que é um prolongamento direto da escravização doméstica, por isso mesmo um setor que permaneceu desregulamentado e sem legislação trabalhista até recentemente, sempre foi um setor predisposto ao estabelecimento de relações de escravização das mulheres pretas e pardas. 

Recentemente muitos casos vieram à tona no país, com senhoras negras tendo passado praticamente a vida toda servindo a patrões que nunca pagaram por seus serviços e que as mantiveram em cárcere privado. O evento de Caxias do Sul nem tinha esfriado e veio a público o caso dos trabalhadores terceirizados a serviço da Prefeitura Municipal de Joinville, em Santa Catarina, comendo marmitas sentados no chão de um canil. 

O repórter Leandro Schmitz, que fez a denúncia, foi imediatamente demitido pela Folha Metropolitana, o que demonstra que há uma espécie de consenso silencioso entre as elites políticas e empresariais brasileiras em favor de uma degradação absoluta das relações de trabalho que expressam o inconfessável desejo de escravização. No Brasil, muita gente, se tiver oportunidade, faz de alguém um escravo ou escrava para chamar de seu ou de sua.

O morticínio que as forças de segurança perpetram contra as populações negras e periféricas (que, assim como os escravizados, são suspeitos de serem perigosos, preguiçosos, vagabundos, até provem o contrário, como vários casos recentes demonstram) ainda são ecos do poder senhorial de vida e morte sobre os corpos pretos durante a vigência da instituição da escravidão. 

As polícias, integradas por uma grande parcela da população afrodescendente, agem como agiam os negros que se tornavam feitores e capitães-do-mato, que gozavam com o exercício de parte do poder senhorial, por serem a encarnação e a presença do senhor em dados espaços e situações. 

Quantas pessoas, ainda hoje, quando se veem numa posição de poder, quando passam a ocupar postos que os fazem encarnar parte do poder do patrão, não fazem questão de espezinhar e violentar seus subordinados para se sentirem sendo essa figura, no fundo, desejada que é o patrão. 

Os policiais pretos e pardos matam, torturam, humilham seus iguais para se sentirem superiores, para se sentirem distintos, para fugirem do espectro da senzala, que continua assombrando a todos, para viverem fantasias de casa-grande, para às custas da violência dar passagem a esse senhor de escravos que habita a suas entranhas, que foi nela introjetado pela educação racista e senhorial que ainda recebemos. 

O senhor de escravos que ainda habita como um fantasma, mas também como uma fantasia de poder desabrido e sem peias sobre o corpo do outro, sua completa submissão ao desejo de posse e poder de outro, nossas subjetividades é o vinho amargo que a história pátria nos legou e que precisamos fazer um esforço coletivo de transubstanciação, de transformação, sob pena de continuarmos a tragar o gole travoso do preconceito, da injustiça e da exploração sem limites do trabalho alheio. 

Não podemos admitir que empresas continuam tratando seus empregados como escravos contemporâneos, que em nome do lucro imoral e fácil permitamos que homens e mulheres, de qualquer procedência regional ou nacional, sejam submetidos a ganância sem controle. 

A vitória da extrema-direita nasceu de uma reação revulsiva das forças que veem das entranhas mais reativas do país, das forças sociais movidas por esse inconsciente bárbaro marcado por desejos violentos de domínio e subjugação, pelo ódio a todas as forças democráticas e civilizatórias que veem tentando por freios e limites a esses poderes truculentos e transformar essa ordem social apodrecida e arcaica, que se perpetua aliada as forças que aparecem como as mais moderninhas e up-to-date.



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