Mausoléu Castelo Branco: na escolha da herança, o futuro por vir
Por que se constrói um monumento? O que está implicado no gesto de se construir um lugar de recordação, de memória? A palavra monumento vem da palavra grega mnemosynon e das palavras latinas moneo, monere, que significam aquilo que faz lembrar, mas também aquilo que aconselha e aquilo que alerta. De saída, portanto, um monumento está relacionado a três funções sociais distintas: a primeira, a da recordação, a da memória, ou seja, ele visa impedir que algo ou alguém, um evento ou uma pessoa, possam ser esquecidos com o passar do tempo. Em sua pretensa perenidade de pedra, de metal, de concreto a garantia de que o passar do tempo não trará o olvido daquilo ou daquele a que ou a quem homenageia.
Mas um monumento está associado a uma segunda função social, a de transmitir uma dada lição, a de legar uma herança, a de fazer chegar às futuras gerações um dado conhecimento, uma dada leitura, uma dada interpretação do passado, da memória daquela coletividade. Construir um monumento é fazer a escolha de uma dada herança, de uma dada memória, é selecionar quem e o que deve ser lembrado. Esse é o aspecto político do gesto de monumentalizar, pois, ele implica em escolher uma versão para o passado, uma dada leitura do que se passou, uma dada interpretação acerca do que ou de quem é ali homenageado.
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Mas, além disso, a construção de um monumento é uma espécie de alerta acerca dos valores que aquele evento ou personagem encarnaram e que não deveriam ser esquecidos. Há na construção de um monumento a presença da ideia de justiça, até mesmo de reparação. Monumentaliza-se algo ou alguém para lhe fazer justiça, para alertar as futuras gerações de que aquilo ou aquele ali referenciado deve ser objeto de culto, agradecimento e reconhecimento. Presta-se homenagem a alguém ou a algo de quem ou de que as novas gerações se sentem devedoras. O monumento é um tributo, o pagamento, a retribuição por algo que foi feito ou que ocorreu no passado. São as novas gerações se reconhecendo tributárias e, de certa forma, portanto, continuadoras daquele ou daquilo que ali é homenageado. Portanto, monumentalizar é reconhecer uma dada memória, é lhe fazer justiça, é tomá-la como uma herança que deve ser repassada para as gerações futuras. Há no monumento um conteúdo ético de exemplaridade, ele materializa, ele corporeifica um ausente, um espectro do passado, um fantasma que, através dele, vem nos mirar, vem olhar para nós, vem nos interpelar. No monumento, o morto nos convoca a mirá-lo, a segui-lo, a tomá-lo como guia de valores e de modos de agir.
Uma polêmica desatou, nos últimos dias, quando o governador do Ceará, Elmano de Freitas, anunciou a decisão de transformar o Mausoléu Castelo Branco, situado ao lado do Palácio da Abolição, sede do executivo estadual, num monumento aos abolicionistas e ao abolicionismo cearense, homenageando, por exemplo, a Francisco José do Nascimento, mais conhecido como Dragão do Mar, um jangadeiro cearense que passou a recusar fazer o transporte de escravizados.
Para um palácio que leva o nome de abolição não vejo como uma decisão poderia ser mais coerente. O que o governador e sua equipe está fazendo é escolher uma dada herança, uma dada memória para se homenagear no presente. Se trata de uma decisão política ,porque política é toda escolha de memória, de herança, de história. Não há escolha neutra quando se trata de decidir a quem ou o que merece ser homenageado, monumentalizado.
Por que é importante a escolha que fazemos acerca do que herdar, do que lembrar? É que o passado não é um morto, um inerte, um ausente, um túmulo, um simples mausoléu, o passado é um morto-vivo, um inerte-atuante, um ausente-presente, um túmulo-monumento. O passado é espectral, é fantasmático, como defende o filósofo francês Jacques Derrida, ele nos olha mesmo quando não o vemos, ele nos toca mesmo quando não o tocamos em sua tangibilidade material, ele nos convoca mesmo quando não o ouvimos, ele nos interpela mesmo quando somos incapazes de ouvir nitidamente suas vozes. No que escolhemos como herança está implicado o futuro que queremos como sociedade, como coletividade. Na herança está um porvir, naquilo que escolhemos lembrar se inscrevem possibilidades de futuros. Os espectros do passado habitam não apenas o presente, mas colonizam também o futuro.
No debate acerca do Mausoléu Castelo Branco, a sociedade cearense deve se perguntar qual a herança que quer assumir, os cearenses querem ser herdeiros da luta pela liberdade dos escravizados ou ser herdeiros do fundador de uma ditadura? Há nesse gesto uma opção política clara: ser herdeiros da luta contra a arbitrariedade do poder senhorial ou ser herdeiros do arbítrio. Optar por Castelo Branco não é optar apenas por um dos dois cearenses que ocuparam a Presidência da República (ambos em momentos de exceção, o que já é motivo de reflexão, já que José Linhares chegou ao poder convocado também pelas Forças Armadas após elas deporem o presidente-ditador Getúlio Vargas, em 1945), mas é optar por todos os valores que ele e o regime ditatorial que implantou no país representam.
É preciso estar atentos não apenas ao homenageado, mas a quem homenageou e em que contexto se deu a homenagem. A homenagem foi uma escolha de herança, foi o reconhecimento de uma memória, foi a seleção de um passado para chegar até o futuro, para habitá-lo e constituí-lo. Enquanto o Mausoléu habitar o espaço presente da cidade de Fortaleza, é o fantasma de Castelo Banco que estará mirando, interpelando e convocando os cearenses a se comportarem como ele se comportou, a tomá-lo como exemplo no plano dos valores e no plano das ideias, a fazer do futuro, do porvir uma extensão de sua presença fantasmagórica. Que espécie de justiça se advoga ao se monumentalizar alguém que foi prócer de um regime marcado pela injustiça, pelo estupro do próprio Judiciário e dos direitos e garantias individuais e coletivas?
A obra do Mausoléu foi iniciada no governo de Plácido Castelo, afilhado político do próprio Castelo Branco, que o nomeou governador indicado, após a figura que o monumento homenageia, através do Ato Institucional n. 2, extinguir os partidos políticos e criar um bipartidarismo para dar uma máscara democrática ao autoritarismo e acabar com as eleições diretas para os governos dos estados. Esse mesmo Ato Institucional aumentou o número de ministros do Supremo Tribunal Federal para garantir o controle do Executivo sobre aquele órgão (o mesmo que planejava fazer recentemente o candidato a ditador Jair Bolsonaro) e permitiu que civis fossem julgados por tribunais militares em casos considerados como atentados a segurança nacional. Homenagear Castelo Branco é escolher essas ações como herança, é escolher fazer justiça a quem não teve o menor respeito pela ideia de justiça, quem acobertou toda sorte de lesões aos direitos individuais e políticos.
O monumento foi concluído no governo do Coronel reformado do Exército César Cals, nomeado pelo ditador que comandou o período áureo da repressão, dos assassinatos e da tortura de inimigos do regime, o presidente Emílio Garrastazu Médice. Ele foi inaugurado em 1972, no momento mais sangrento da ditadura. Ele é, portanto, uma memória oficial desse regime e dessa época de dor e sofrimento. Ele significa escolher como herança e, portanto, como proposta de futuro o espectro da ditadura, os fantasmas ainda insepultos de torturadores e ditadores. Optar por defender a continuidade desse monumento habitando o espaço público, republicano e democrático, optar por ter, ao lado do palácio que deve simbolizar o exercício do poder sob os ditames do Estado democrático de direito, um monumento que recorda e festeja aquele que foi um dos articuladores mais atuantes do golpe militar, que pôs fim, por vinte e cinco anos, à democracia no Brasil, é optar por não sepultar o fantasma e as fantasias autoritárias que teimam em vagar entre nós e obsedar nossa presente e nosso futuro. Um regime que caiu de podre, que morreu fedendo muito, não pode permanecer como esse cadáver insepulto a empestar a atmosfera da cidade. O Mausoléu Castelo Branco é uma espécie de Alien a habitar e corroer por dentro o corpo da democracia simbolizado pelo Palácio da Abolição.
Basta recordarmos as atitudes tomadas por Castelo Branco, quando presidente da ditadura, para não darmos crédito a imagem que se procurou criar para ele, após a sua morte misteriosa, em acidente aéreo em 1967, ou seja, a imagem de um moderado, de alguém que queria a volta do poder civil, que foi contestado e, talvez, até morto, pela chamada “linha dura” do regime, encabeçada por Costa e Silva, que o sucedeu. Bastou que as oposições vencessem as eleições para os governos de Minas Gerais e Rio de Janeiro, no início de 1966, para que ele extinguisse os partidos políticos, implantasse um bipartidarismo de fancaria, pusesse fim às eleições diretas para governadores e prefeitos de capitais e buscasse subjugar o Judiciário às vontades do Poder Executivo, aumentando de doze para dezesseis o número de ministros da Corte e aposentando compulsoriamente juízes que não votavam como a ditadura queria.
Aqueles que estão se colocando a favor da continuidade do Mausoléu Castelo Branco estão fazendo a escolha de uma herança, de uma memória. Estão dispostos a cultuar, a homenagear, a relembrar esses fatos e essa época. Castelo Branco é mais do que um homem é o símbolo de uma época que devemos enterrar. Ele é um fantasma, um espectro com o qual não devemos mais ter nenhum compromisso. É necessário fazer com que seu espírito retorne a tumba, de onde não deve mais sair. É preciso exorcizar o espirito autoritário, ditatorial, discricionário, golpista, militarista, reacionário no campo da política e dos valores que ele representa, que ele simboliza. É preciso enterrar de vez não apenas a sua memoria, mas a memória do regime que ele encarnou. Uma democracia não pode continuar prestando culto a um ditador, pois isso significará emitir uma mensagem para o futuro, para as futuras gerações. Defender a perenidade do monumento é defender a perenidade, que ainda tenha futuro, as ideias políticas e os valores que ele representa e simboliza.
O Ceará tem no abolicionismo e na abolição, tem no jangadeiro negro, uma herança muito mais adequada para ser monumentalizada, tem na luta pela liberdade, na recusa da escravização, na valentia e destemor de um homem preto, uma herança que merece ter porvir, merece ter e ser futuro. Não esqueçamos que ao erguemos um monumento não apenas lembramos, mas, também, aconselhamos e alertamos. Que a ressignificação do mausoléu signifique aconselhar e alertar para que cultivemos a democracia, que busquemos a justiça e a reparação das violações aos direitos que foram perpetradas no passado. Que o monumento nos lembre da vida e não da morte!
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.