'Cangaço Novo': as consequências do nomear fenômenos novos com velhos conceitos
Foi lançada na sexta-feira, dia 18 de agosto, a nova série brasileira do Amazon Prime Video, intitulada “Cangaço Novo”. A produção é dirigida pelo cineastas Fábio Mendonça e Aly Muritiba, nascidos em São Paulo e na Bahia. A série gira em torno do personagem Ubaldo, interpretado pelo ator pernambucano, Allan Souza Lima, um bancário que mora em São Paulo, que para salvar a vida de seu pai adotivo, vai ao sertão cearense em busca da herança deixada por seu pai biológico, que fora um famoso cangaceiro em vida e que, uma vez, morto, era objeto de uma espécie de culto religioso capitaneado por uma de suas filhas, uma das irmãs do protagonista, Dilvânia, interpretada pela atriz mineira Thainá Duarte.
Ao chegar na fictícia cidade cearense de Cratará, Ubaldo vai encontrar também com sua irmã Dinorah, interpretada pela atriz potiguar Alice Carvalho, que faz parte de uma gangue que se dedica a assaltar bancos. Desde a sua chegada todos se referem ao fato de ser idêntico ao pai, de ter a mesma aparência física do cangaceiro famoso que foi seu genitor, isso termina por levá-lo ao mundo do crime e a se tornar uma liderança “natural” do grupo de bandidos do qual faz parte sua irmã.
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O primeiro aspecto que queria discutir é o emprego de conceitos que nomearam fenômenos históricos de uma outra época, fenômenos bem específicos de um dado tempo, fruto de um dado contexto histórico, para nomear fenômenos completamente distintos, de épocas também completamente diferentes. Essa é uma prática comum quando se trata de abordar a história do Nordeste brasileiro. Devemos nos perguntar sobre as consequências que resultam dessa prática frequente de dar a eventos contemporâneos da vida nordestina rótulos que advém de eventos que ocorreram no passado. A primeira consequência é a de tomarmos a história nordestina como se ela fosse presidida por uma espécie de tempo cíclico, uma visão do tempo distinta daquela prevalecente na modernidade ocidental, presidida por uma dada linearidade, pela ideia de mudança e voltada para o futuro.
A história nordestina não seria moderna, não estaria alicerçada em ideias como as de progresso, desenvolvimento, mudança, transformação, revolução. A história nordestina seria uma espécie de moto contínuo, em que as mudanças seriam apenas de superfície, haveria uma espécie de história essencial, que se repetiria periodicamente, uma história feita de repetições, de reaparecimentos, de retornos, de voltas ao passado, de ressurgimentos, marcada pela tradicionalidade, pelo costumeiro.
Isso fica explícito na própria forma como os roteiristas Fernando Garrido, Mariana Bardan, Eduardo Melo, Erez Milgrom e Viviane Pistache pensaram a trama, organizada, justamente, em torno de um retorno ao passado feito pelo personagem principal. A trama de saída reproduz a visão clichê de que sair de São Paulo e vir para o Nordeste é fazer uma espécie de retorno no tempo. Enquanto São Paulo representa o contemporâneo, o moderno, no Nordeste, mesmo vivendo na contemporaneidade, seu presente é regido por um tempo passado, por um tempo mítico que teima em não passar ou se apartar do presente, um tempo anterior que assombra e faz sombra sobre o tempo de hoje. Quando o personagem principal viaja ao sertão ele faz um retorno a um tempo ancestral, um tempo que está marcado na própria toponímia, no nome da terra para onde retorna, pois significativamente ela tem um nome de origem pretensamente indígena, como muitas cidades do estado do Ceará: Cratará. Viajar ao Ceará é viajar no tempo, é se ver em meio ao culto de uma memória, de personagens de outras temporalidades, que se projetam e são assumidos como projeção na atualidade. O presente do Nordeste, assim como seu futuro, seria sempre assombrado por esse passado que nunca passa, por essa história de retornos do recalcado, do esquecido, do mitificado.
Ao se dar a um fenômeno histórico completamente contemporâneo, o crime organizado, as gangues ou quadrilhas de assalto a banco, um conceito do passado como o de cangaço, o que se faz é reproduzir uma visão da história nordestina como reposição sem fim dos mesmos acontecimentos, dos mesmos personagens e daí, como consequência, a reprodução de cenas, cenários, os clichês imagéticos e visuais, os lugares comuns que estão presentes na trama. O adjetivo novo não é capaz de superar a força do conceito de cangaço e a noção de repetição histórica que ele carrega. Obedecendo a uma estratégia da indústria cultural de apostar em temáticas que já possuem um público formado, que tem apelo popular, de se referenciar em toda uma tradição imagética e narrativa que já existe no cinema e na produção visual brasileira em torno da temática do cangaço, se projeta, inadequadamente, esse conceito para nomear fenômenos completamente distintos do que foi o cangaço como evento histórico. Reduz-se o cangaço a alguns traços clichês, se faz dele um estereotipo: basta ser um grupo de pessoas armadas, cometendo crimes, matando para roubar, causando medo e terror nas pessoas e comunidades aonde chegam, travando luta renhida com as forças policiais, mantendo relações de corrupção e proteção com autoridades constituídas, inclusive com membros das próprias forças policiais corrompidos, que estaríamos diante do cangaço. A substância histórica do fenômeno é retirada e ficamos com uma espécie de carcaça, de máscara, de fantasia, que podem ser vestidas em qualquer evento, de qualquer tempo.
Mas o aspecto mais lamentável desse Cangaço Novo, que já nasce velho, é a reprodução de uma visão eugenista e naturalista do fenômeno do cangaço. Não sei se os autores da trama se dão conta, mas eles reproduzem uma das chaves de leitura das mais contestáveis acerca do fenômeno do cangaço, e que foi comum até meados do século XX, quando o jornalista e jurista cearense Rui Facó escreveu o seu famoso livro “Cangaceiros e Fanáticos”, publicado após a sua morte, no início dos anos sessenta, que fez uma leitura do cangaceirismo a partir de suas condicionantes históricas e sociológicas, o que já havia sido esboçado antes por autores cearenses, como Gustavo Barroso e Djacir Menezes, mas que sucumbiram, como faz os roteiristas dessa trama, as explicações de cunho raciológico e biológico do cangaceirismo.
Em Cangaço Novo se dá uma indisfarçável centralidade ao argumento da descendência, do sangue, da hereditariedade, para explicar os comportamentos e atitudes dos personagens. Embora vejamos falas em que os personagens associam seu comportamento criminoso à revolta contra as injustiças sociais, como sendo resultado das estruturas sociais, econômicas e de poder iníquas, da violência física e simbólica representadas pela forma como está organizada a sociedade local, a motivação central do comportamento tanto de Ubaldo, como de suas irmãs, uma dedicada ao crime e a outra dedicada a dirigir uma irmandade, que presta uma espécie de culto messiânico a memória do cangaceiro morto, é a descendência biológica, são os laços de sangue, a hereditariedade. Se reproduz a ideia equivocada e nefasta de que o sangue transmite também subjetividades, sensibilidades, comportamentos, caracteres.
Em pleno século vinte um, vemos numa produção visual, feita para um canal de streaming, o que há de mais contemporâneo em termos de narrativa, a reprodução de teses já há muito ultrapassadas, como a noção de atavismo, de criminoso nato. Se Ubaldo foi criado em São Paulo, por um pai adotivo que pertencia a um outro universo cultural, se foi educado em um contexto social e de ideias completamente diferente daquele do sertão nordestino, o que explica ele seguir o destino de criminalidade de seu pai senão for a força da hereditariedade, do sangue. Essa centralidade do sangue é muitas vezes verbalizada pelos personagens da trama: ao se carregar um sangue se carregaria uma sina, um destino, uma história que se decidiria no nascimento. O fato de ser a reencarnação física do pai o destina a ser a reencarnação dele quanto ao comportamento criminoso, assim como acontece com a irmã Dinorah.
Na série, à mística do sangue ainda se associa a mística da terra. A centralidade do sangue, da hereditariedade, do derramamento do sangue, estaria associada, seria constituinte da própria terra sertaneja. Ser sertanejo, ser do sertão é estar preso a essa lógica do sangue, de seguir os ditames e os destinos que a ancestralidade, que a hereditariedade dita. No sertão terra e sangue se misturam, a terra, o sertão, o pertencimento a esse solo se carregam no sangue, ou seja, no sertão nordestino se daria o curioso fenômeno de uma identidade regional que corre nas veias e que já se traz ao nascer. A história individual e coletiva passa a ser definida pelas genealogias. Conta-se uma História sem possibilidade de mudança, onde o futuro repete o passado, pois ele é herança, é destino, é sina definidos no berço.
E se isso não bastasse, a essa visão naturalista e eugênica do fenômeno da criminalidade, se soma a apologia neoliberal do dinheiro, que abre todas as portas, que resolve todos os problemas, que deve ser o objetivo central da vida das pessoas, individualistas e interesseiras. São edificantes as falas do bancário Ubaldo (cujo discurso nada fica a dever ao discurso de um banqueiro da Faria Lima) nos convencendo que o dinheiro abre todas as portas, que ele é a única forma de dados setores da sociedade se empoderarem, que gente nascida como ele (mais uma vez a sina do nascimento) só tem chances na vida se conquistar o dinheiro, seja de que forma for (em São Paulo pertencendo ao sistema financeiro e no Nordeste sendo contra o sistema, entrando para a bandidagem). A bela intenção de salvar a vida do padrasto doente serve de escusas (para usar uma palavra da moda no mundo da criminalidade contumaz) para que faça um verdadeiro culto ao dinheiro e a posse de mercadorias, símbolos de prestígio e poder, entre elas a posse das armas mais modernas e letais (outra coqueluche do momento na sociedade facistoide brasileira). Não é preciso dizer que se, aparentemente, o fato de Dinorah fazer parte do mundo masculinizado e machista do crime rompe com os lugares clássicos de gênero, isso não se dá porque, justamente, o cangaço foi um acontecimento essencial para que emergisse a visão masculinizada da mulher sertaneja e nordestina, da qual ela é uma encarnação.
Essa forma de pensar a história e de narrá-la, têm consequências políticas que, muitas vezes, aqueles que escrevem, dirigem, produzem e encarnam essas tramas não se dão conta. Ávidos por repetirem fórmulas de sucesso, por atingirem o maior público e faturamento possível, não atentam para o fato de que realimentarem e reporem esse imaginário acerca do Nordeste, do sertão, do Ceará reforça dadas relações de subordinação e hierarquia, tanto dentro da região, como no interior do país. No Nordeste, o reforço da ideia de barbarismo e primitivismo do sertão, essas terras presas a uma temporalidade outra, tempo ancestral da hereditariedade, tempo circular do retorno do mesmo, onde não há lugar para mudanças e transformações históricas profundas, uma terra fadada a mesmice e a recorrência (imagem que agrada, sobretudo, às forças reacionárias e conservadoras, que adoram pensar que no seu sertão tudo que é novo é apenas volta ao passado).
No país, o reforço da ideia de atraso, rusticidade, violência, associadas ao Nordeste, região que estaria entregue, ainda, a lógica patriarcal, senhorial e aristocrática do sangue, dos vínculos misteriosos e atemporais traçados pela hereditariedade, tudo isso contraposto a São Paulo, o lugar da verdadeira contemporaneidade, onde o presente não é, na verdade, um passado sob nova roupagem, lá o tempo andaria sempre pra frente (a eleição de Tarcísio de Freitas e principalmente do astronauta Marcos Pontes não me deixa mentir), ao contrário do Nordeste, onde ele sempre retornaria para assombrar até as telas de streaming.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.