Foi Golpe! Por que dados órgãos de imprensa querem sustentar narrativa sem apoio jurídico e factual?

Foto: Agência Brasil / Marcelo Camargo

Com a recente decisão do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF-1) de que as chamadas “pedaladas fiscais”, que foram utilizadas como pretexto jurídico e factual, para promover o processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, não existiram e que os fatos que foram assim nomeados não se constituíram em crimes, que dirá crime de responsabilidade, que foi a figura jurídica, constitucionalmente prevista, que foi utilizada para embasar o pedido de impedimento da mandatária, eleita democraticamente, redigido pelos “brilhantes juristas” Miguel Reale Júnior e Janaína Paschoal, perdeu sustentação a narrativa que sustentava que o impeachment foi legal. Com essa decisão judicial, o próprio Poder Judiciário reconhece que não houve base legal, constitucional, para se promover o impedimento de uma ocupante do poder Executivo federal, solução extrema, que não pode, nem deve ser banalizada, sob pena de se fragilizar as próprias instituições e, por atingir alguém que foi democraticamente escolhida pela população, atingir o próprio sistema democrático. O impeachment presidencial não é e não pode ser instrumento da luta política e, muito menos, meio de correção de rumos de uma administração que, por ventura, não esteja sendo eficiente na gestão econômica ou administrativa do país.

Basta ler a Lei n. 1.079, de 10 de abril de 1950, a chamada Lei do impeachment, em seu artigo 4º, para ver que ela não prevê destituição de Presidente da República porque ele perdeu apoio político no Congresso ou na sociedade e muito menos por ter cometido erros na gestão da economia. Só uma hermenêutica muito torta para conseguir ler isso numa lei que claramente define os oito casos de afronta a Constituição Federal em que o impeachment pode ser levado a efeito, ou seja: atentar contra a existência da União; o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados; atentar contra os direitos políticos individuais e sociais; contra a segurança interna do país; contra a probidade na administração pública; contra a lei orçamentária (que foi onde os juristas do impeachment enquadraram o que chamaram de “pedaladas fiscais”); contra a guarda e o legal emprego do dinheiro público (esse artigo também foi referido para embasar o pedido) e o não cumprir as decisões judiciais. Fica claro que o que tivemos foi um processo meramente político, sem o apoio jurídico necessário. Embora o julgamento do processo de impeachment, não deixe de ser um julgamento político, já que é feito pelas duas casas legislativas e não, num primeiro momento, pelo Poder Judiciário, ele precisa ter embasamento legal e constitucional, portanto, jurídico para que seja considerado legal. Qualquer processo que não obedeça a essas exigências legais e factuais será um golpe de Estado, feito com aparência de legalidade, seguindo uma ritualística pretensamente legal, mas eivado de ilegalidade por não se apoiar em base factual e jurídica demonstradas. Por isso, podemos afirmar com toda certeza de que o que ocorreu em 2016 no Brasil foi um golpe de Estado, patrocinado pelo Parlamento, por parte do Poder Judiciário (que não o impediu e até forneceu a ele tintas de legalidade), por setores das elites econômicas e políticas do país e pela grande imprensa.

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O que quero comentar nesse artigo é, justamente, o comportamento de órgãos da grande imprensa, que foram entusiastas promotores do golpe que, diante da decisão judicial que retira qualquer legalidade jurídica e qualquer embasamento fático para o impeachment da presidenta Dilma, se recusam a admitir a realidade, teimam em manter uma narrativa que não tem mais nenhuma sustentação, nem legal, nem factual. Esses órgãos de imprensa que costumam cobrar autocrítica de dados setores da vida política brasileira, que cobram que dados partidos façam mea culpa pública de seus equívocos, que cobra de partidos de esquerda como o PT que façam uma espécie de autoflagelação em praça pública, se mostram incapazes de rever suas narrativas diante da constatação fática e jurídica de que o que aconteceu no Brasil, em 2016, foi um golpe de Estado, em seu novo modelo, um golpe soft, feito não com tropas e tanques nas ruas, mas com o uso das próprias instituições do Estado e com dado rito com aparência de legalidade. Esses órgãos de imprensa, que contribuíram decisivamente para criar o clima político e na opinião pública para que o golpe se efetivasse, não conseguem rever a narrativa que construíram e tentam sustentá-la a todo custo, mesmo que isso signifique legitimar eventos políticos ilegais e a revelia da Constituição Federal, o que em última instância é fazer apologia do golpismo, é relativizar o aparato legal do país e contribuir para a fragilização das instituições democráticas.

Essa luta de narrativas se iniciou ainda durante o processo de impeachment, quando as forças democráticas do país denunciavam que o processo em curso era um processo golpista, de que não havia sustentação fática e jurídica para um processo de impeachment. O jornal O Estado de São Paulo publicou um editorial furibundo contra um grupo de historiadores, intitulados Historiadores pela Democracia, que contestavam a narrativa golpista da imprensa, esgrimindo o argumento típico do século XIX, quando nasceu o Estadão, de que historiadores não podem tentar interpretar os fatos do presente, não podem interferir nos debates contemporâneos, devem esperar cinquenta anos (prazo em que talvez o jornal venha admitir que apoiou um golpe e venha pedir desculpas, como fez em ano recente as organizações Globo em relação ao golpe de 1964) para dar sua interpretação dos eventos.

A altivez e a dignidade com que a presidenta Dilma enfrentou todo o processo, não deixando de encará-lo de frente, comparecendo em todas as instâncias para denunciar o golpismo e quais eram os verdadeiros interesses que estavam por trás do processo fraudulento de impeachment não foi capaz de constranger sequer os setores da mídia que embarcaram na aventura antidemocrática e antirrepublicana. Em discurso memorável, após ser definitivamente deposta por um golpe parlamentar-empresarial-jurídico-midiático, a presidenta previu todo o desastre que viria a seguir: destruição dos direitos trabalhistas, sindicais, previdenciários e das políticas sociais; entrega do patrimônio público para interesses privados (interesses que esses órgãos de imprensa representam); privatização do pré-sal, com a Petrobrás sedo colocada a serviço exclusivamente dos investidores, e da Eletrobrás, submissão aos interesses norte-americanos (a que também serve parte da mídia brasileira), fragilização da democracia, com a ascensão do fascismo e a eleição de Jair Bolsonaro; perseguição a movimentos sociais, a indígenas e populações tradicionais e, o mais curioso, à própria imprensa, aos jornalistas. O curioso é que, quando lemos na lei do impeachment os casos que podem motivar um processo como esse constatamos que o ex-presidente Bolsonaro poderia ser enquadrado em quase todos eles e, por incrível que possa parecer, não vimos os mesmos órgãos de imprensa que fizeram verdadeira propaganda a favor do impedimento da presidente Dilma, terem se empenhado no impedimento do presidente fascista.

Essa semana que passou, após o definitivo desmascaramento do fato de que o que ocorreu no Brasil em 2016 foi um golpe de Estado, em reação a falas do presidente Lula denunciando, inclusive internacionalmente, a farsa do impeachment sem crime de responsabilidade, a verdadeira armação que foi feita para retirar o PT e a esquerda do poder, já que as forças conservadoras politicamente e o capital, que dados órgãos de imprensa representam, não conseguiram o derrotar eleitoralmente e após proposta de uma solenidade de reparação para a ex-presidente, os jornais Folha de São Paulo e O Globo publicaram editoriais defendendo o indefensável, tentando através de verdadeiros malabarismos retóricos sustentar a narrativa do impeachment que ruiu completamente, deixando essa gente com a brocha nas mãos. Mas, o mais grave, é que essas narrativas não só legitimam um atentado a democracia, como deixam claro que esses órgãos de imprensa estarão disponíveis para apoiarem novas tentativas golpistas, desde que elas atendam aos interesses econômicos, empresariais e políticos que representam. Esses órgãos de imprensa deixam claro que o compromisso deles com o regime democrático vai até a segunda linha da Constituição, que não titubearão em apoiar golpes desde que seja a única forma de que seus projetos para o país sejam aplicados e que seus interesses sejam atendidos.

Não pode haver impeachment porque o presidente ou a presidenta da República perdeu a maioria no Congresso Nacional, o nosso regime de governo, como está previsto na Constituição é presidencialista, com o mandatário sendo escolhido pelo sufrágio universal da população do país. Nosso regime político não é o parlamentarista, no qual a perda de maioria no Congresso implica a queda do governante - o primeiro-ministro - e a convocação de novas eleições. Aqui, o que vimos foi um vice-presidente da Republica, que foi eleito na mesma chapa e com o mesmo programa eleitoral da presidente, liderar um golpe que o levou a ocupar um cargo para o qual não havia sido eleito e para executar um programa econômico que havia sido rejeitado pela população no processo eleitoral.

Mais absurdo ainda é defender a legalidade de um processo de impeachment usando como escusas (palavra da moda no momento) a má gestão da economia. Não há nenhuma previsão legal ou constitucional para isso. Sabemos que o que ocorreu no segundo mandato da presidenta Dilma foi uma verdadeira sabotagem da Câmara Federal, sob a presidência de Eduardo Cunha, o capitão do golpe, de qualquer política econômica, com as chamadas pautas-bombas e a não aprovação das medidas econômicas enviadas pela presidência da República. Mesmo os erros de condução da política econômica, e eles houveram, sobretudo o fato de tentar mudar o projeto econômico vitorioso nas urnas, com a ilusão de atrair o apoio de setores empresariais para dar sustentação a um governo ameaçado pela conjura parlamentar-jurídico-midiática, não legitimam, não oferecem base legal ou fática para um processo de impeachment. Tentar convencer seus leitores do contrário é enganá-los, é fazer uma narrativa mentirosa, é usar de artifícios retóricos para justificar o injustificável e permitir que esses órgãos de imprensa não venham a público assumir que erraram, que patrocinaram um processo que foi desastroso para o país, em todos os aspectos. Assim como não fizeram até hoje em relação ao apoio acrítico que deram a operação Lava Jato, esses órgãos de imprensa, em nome dos interesses que defendem, que não são os interesses do país, parecem que vão levar décadas para fazerem o mea culpa em relação a narrativa golpista que sustentaram e patrocinaram e que, pelo visto, ainda estão dispostos a sustentar.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

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