1932: excepcionalidade paulista e inferioridade nordestina

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Se, mais uma vez, os estados nordestinos se inclinaram, no processo eleitoral, na mesma direção, também, mais uma vez, São Paulo foi, majoritariamente, na direção oposta. 

Se o Nordeste votou maciçamente no candidato a presidente do Partido do Trabalhadores e elegeu, na maioria dos estados, governadores apoiados pelo candidato petista, São Paulo não só votou em sua maioria de votantes em Jair Bolsonaro, como elegeu para governador o candidato bolsonarista, um ilustre desconhecido, um político carioca que caiu de paraquedas na política do estado, demonstrando, ao logo do processo eleitoral, total desconhecimento da realidade da unidade da federação que vai governar, não sabendo sequer onde ficava a seção eleitoral onde iria votar. 

No entanto, se observarmos o comportamento eleitoral do estado de São Paulo, desde o momento em que o PT assumiu a presidência da República, veremos que a tendência dominante foi desse estado se comportar como uma excepcionalidade no interior do país. 

São Paulo se constituiu num bastião do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), um território inexpugnável para candidaturas petistas, que têm sucesso na capital e em importantes cidades do estado, mas que sempre fracassam na hora de conquistar o governo do estado. Nas cinco eleições nacionais vencidas pelo PT, São Paulo só deu vitória ao candidato petista nas eleições de 2002, mesmo assim elegendo para governador Geraldo Alckmin do PSDB.

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Acabo de ler o livro da historiadora norte-americana Bárbara Weinstein, intitulado A cor da modernidade: a branquitude e a formação da identidade paulista, que nos ajuda a compreender esse comportamento do eleitorado paulista, bem como a visão preconceituosa que encontramos entre a população de São Paulo a respeito do Nordeste e dos nordestinos. 

A identidade de São Paulo foi forjada entre o final do século XIX e meados do século XX, momento em que esse estado assume a dianteira na economia e na política nacionais. Elaborada, em grande medida, por intelectuais ligados ao Instituto Histórico e Geográfico Paulista e por aqueles articulistas da grande imprensa daquele estado, a identidade paulista tende a tomar como contraponto as chamadas áreas atrasadas ou periféricas do país, para ressaltar, justamente, o que seria a modernidade e o progresso paulistas. 

O Nordeste, área do país que vivia um profundo processo de declínio econômico e político, área que perdera centralidade no país, é tomada como o outro a partir do qual São Paulo se pensa, inclusive com a colaboração dos intelectuais nordestinos, que tomam São Paulo como aquele espaço a partir do qual o Nordeste é pensado, seja para seguir o seu exemplo, seja para recusar o caminho que ele trilhava.

Nessa comparação, além do progresso, da modernidade, da urbanização, o traço que distinguiria os dois espaços seria o elemento racial. Silenciando sobre a presença de uma enorme população negra, recém-saída da escravização, os intelectuais paulistas tomam o imigrante europeu, essa população pretensamente branca que estava chegando em massa para trabalhar nos cafezais ou nas atividades urbanas, como uma marca de distinção, como o traço que singularizaria os paulistas em relação as populações mestiças e afrodescendentes do Norte e do Nordeste. A branquitude seria um traço a singularizar o paulista em relação a maioria dos brasileiros.

A identidade paulista é atravessada por uma ideia de superioridade e excepcionalidade. São Paulo estaria acima do Brasil, até geograficamente, já que a cidade de São Paulo, tomada como resumo e síntese do estado, localizada no planalto de Piratininga, fica nas alturas depois da Serra do Mar. 

São Paulo teria uma trajetória divergente do restante do país, marcada pelo desenvolvimento, pelo cosmopolitismo, pela pujança econômica e pelo vanguardismo no campo das artes e da cultura. Enquanto o Nordeste seria uma área marcada pela tradição, pelo passadismo, por uma cultura folclórica e artesanal, uma área estagnada e rotineira economicamente. 

Essa superioridade seria também de caráter racial, já que o projeto de branqueamento da população levado a efeito pelas elites paulistas teria trazido a infusão de sangue novo na população do estado, de raças superiores, tornando o paulista, os descendentes dos bravos e heroicos bandeirantes, uma raça de gigantes, enquanto os tipos de outras áreas do país seriam marcados pelo raquitismo, pela fealdade, pelo desengonçado, tal como Euclides da Cunha descreveu a figura do sertanejo em seu clássico livro Os Sertões.

Mas para entendermos o preconceito contra os nordestinos nutrido pelos paulistas e, ao mesmo tempo, essa ideia da excepcionalidade paulista, de como São Paulo seria distinto de todo o país, sendo a locomotiva que puxaria uma série de vagões vazios, é preciso relembramos o episódio da chamada Revolução Constitucionalista de 1932. 

Nesse ano São Paulo foi protagonista de uma guerra civil no país, com as elites políticas e intelectuais do estado se negando a aceitar o golpe civil-militar ocorrido em outubro de 1930, que levou o político gaúcho Getúlio Vargas ao poder. As lideranças políticas de São Paulo, que dominavam a política do país, desde que os civis assumiram o controle da República recém-criada, não se conformaram que o candidato que apoiaram nas eleições presidenciais de 1930, Júlio Prestes, uma vez vitorioso não conseguisse ser empossado. 

O descontentamento chegou ao auge quando o regime de exceção recém-instalado nomeia um tenente, um militar nordestino, pernambucano, João Alberto Lins de Barros como interventor no estado. João Alberto, além de ter participado do golpe vitorioso da chamada Aliança Liberal, era inaceitável para a elite paulista, por sua participação no levante tenentista de 1924, que chegou a tomar de assalto por alguns dias a cidade de São Paulo e se caracterizara por ser uma contestação ao domínio político das oligarquias paulistas e por ter feito parte da chamada Coluna Prestes, movimento tido como subversivo.

Buscando repor a situação política anterior a 1930, mas tomando como pretexto o fato de que Vargas governava sem amparo constitucional, a elite paulista, momentaneamente unificada e com o apoio de amplas camadas das classes medias emergentes e das camadas populares, mobilizadas por uma extensa propaganda, se lança a aventura de buscar derrotar militarmente o regime recém-implantado. 

Declarada a guerra, a 9 de julho de 1932, data até hoje comemorada pelos paulistas, como se de uma vitória fosse, o governo Vargas trata de mobilizar tropas vindas de vários estados, notadamente dos estados nordestinos. A humilhante derrota sofrida pelos orgulhosos paulistas, derrotados em três meses, por tropas compostas por aqueles que julgavam inferiores física e intelectualmente, fez se acirrar os preconceitos em relação aos vencedores. 

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Após vencer a guerra, Getúlio Vargas decreta a ocupação da cidade de São Paulo por um certo período. Essa ocupação é feita, majoritariamente, por soldados de origem nordestina, que são hostilizados e algumas vezes reagem de modo violento, o que amplia as tensões e os ressentimentos de cunho regional. Desde o ano de 1930, Vargas havia editado a chamada Lei dos Dois Terços que determinava que as empresas teriam que contratar mais trabalhadores nacionais do que estrangeiros. 

Ela favoreceu a migração de nordestinos para São Paulo que, ao longo da década de trinta, vão se tornar uma das principais correntes migratórias para aquele estado.

Os nordestinos migrantes, notadamente aqueles das camadas populares (porque pouco se lembra que parte das elites e setores médios do Nordeste também migram) terão que se haver com essa memória ressentida dos paulistas em relação a derrota sofrida em 1932 e o papel que os nordestinos nela desempenharam. 

O formato achatado das boinas dos soldados que lutavam em defesa do governo federal teria sido o motivo, por exemplo, da emergência do epíteto “cabeça chata” para se referir pejorativamente aos nordestinos. 
Essa memória de 1932 continua sendo cultuada e mobilizada pelas elites paulistas como elemento de identidade e de distinção de São Paulo em relação ao restante do país: único estado que lutou contra a tirania getulista, que defendeu os valores republicanos e da civilização, que em sintonia com a modernidade defendeu a democracia e a cidadania, defendeu as luzes contra as trevas (para quem acabou de sufragar a extrema-direita de tendência fascista soará estranho). O ressentimento pela derrota foi sublimado pelo discurso da excepcionalidade e da singularidade paulistas. 

São Paulo teria sido derrotado por forças do atraso, passadistas, por ser distinto e distante do país que o cerca. Muitas vezes nos deparamos nos discursos preconceituosos e ressentidos de paulistas com essa ideia de que São Paulo sofre uma espécie de cerco dos atrasados, o país não mereceria São Paulo, que o carregaria nas costas e seria por ele sempre contrariado em suas opções políticas e eleitorais. 

Como consequência, a ideia de que isso ocorre porque os paulistas é quem sabem votar (mesmo que tenham sido eleitores de políticos como Ademar de Barros, Jânio Quadros, Paulo Maluf, João Dória e agora Tarcísio de Freitas). São diferentes e distintos e não podem acompanhar o restante do país, notadamente o Nordeste, o exemplo de atraso em todos os aspectos, mesmo quer isso signifique votar em Jair Bolsonaro.

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