O domingo último significou, por vários motivos, a vitória da democracia. O comparecimento inédito, nos últimos anos, de quase oitenta por cento das pessoas aptas a votar, já é, em si mesmo, um atestado do vigor de nossa democracia. Apenas 20,85% dos eleitores deixaram de comparecer as urnas, cerca de 32 milhões de eleitores, a menor abstenção desde as eleições de 2006 e, pela primeira vez, a abstenção foi menor no segundo turno do que no primeiro turno. Registre-se também as baixas taxas de votos nulos e em branco (3,9 e 1,7 milhões respectivamente), cerca de 3,16 e 1,43 do eleitorado.
Nunca se viu uma eleição presidencial tão polarizada e com resultado final tão apertado. Luís Inácio Lula da Silva foi eleito, pela terceira vez, presidente da República (o que já deveria ser um indicador da estabilidade de nossa democracia), com 50,9 por cento dos votos, derrotando, também de forma inédita, o presidente em exercício, Jair Bolsonaro, que obteve 49,1 por cento dos votos válidos.
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Podemos dizer, portanto, que do ponto de vista legal e formal o que tivemos nesse domingo foi uma vitória da democracia, um espetáculo democrático, com a população brasileira comparecendo em massa, de forma entusiasta e pacífica, aos seus locais de votação para escolher o candidato de sua preferência, para gerir, pelos próximos quatro anos, os destinos do país. No entanto, a vitória do candidato do Partido dos Trabalhadores significou, na verdade, a salvação do processo democrático no país, profundamente ameaçado pelo projeto autoritário e autocrático do atual mandatário da República.
O que poderíamos ter assistido, nesse domingo, seria o uso do processo democrático para golpear a própria democracia, para consagrar nas urnas um projeto, já bem encaminhado, de destruição das instituições democráticas e republicanas. Por muito pouco, por uma diferença de 2.139.645 votos, os brasileiros poderiam ter dado a chancela necessária para que o projeto de facistização da sociedade brasileira avançasse, passo necessário para o aprofundamento do projeto neoliberal de destruição de direitos da população, notadamente da classe trabalhadora, para o desmonte de qualquer resquício de Estado de bem-estar entre nós, com a radicalização da entrega dos serviços públicos nas mãos de empresas privadas.
Somente o maior líder popular da nossa história, com a sua habilidade política inconteste, poderia arregimentar e reunir em torno de seu nome todas as forças defensoras da democracia. Neste domingo, como ele mesmo admitiu em seu discurso da vitória, não venceram um candidato e um partido, venceram não apenas uma ampla frente partidária e política, mas todos os amantes da democracia que compreenderam que nessa eleição o que se definia era a própria continuidade do processo democrático. É motivo de preocupação e de atuação, daqui para a frente, que 58.206.354 brasileiros e brasileiras tenham votado num declarado amante de ditaduras e de ditadores, num candidato que tece elogios e homenagens à tortura e à torturadores, a milicianos e neonazistas, que diz publicamente que sua especialidade é matar.
Embora saibamos que essa grande massa de eleitores não possa ser considerada, em sua totalidade, composta de fascistas, já que muitos foram arregimentados pelo maior derrame de recursos públicos que já se viu numa eleição, com a máquina do Estado e instituições públicas como a Polícia Rodoviária Federal e até a Abin, postas a serviço da reeleição do candidato instalado no Palácio do Planalto, é inegável que temos uma sociedade conservadora e com amplos setores de extrema-direita e que se quisermos preservar a democracia temos um grande desafio no que tange a educação política de nossa população.
Sabemos que uma boa parte desses eleitores ainda foram mobilizados pelo antipetismo e pela rejeição da política e dos políticos (o que é em si mesmo um contrassenso e indício de falta de educação política, pois se vota num político profissional, que não faz outra coisa na vida há mais de trinta anos, que fez fortuna na atividade política porque ele seria contra o sistema político, isso é que é votar num mito). A maioria dos órgãos da grande imprensa nacional, que estavam torcendo domingo pela vitória de Lula e, portanto, pela sobrevivência da democracia, da liberdade de expressão, indispensável para o seu funcionamento, que foi vítima, nestes quatro anos, da truculência bolsonarista, é uma das grandes responsáveis, na ânsia de retirar o PT do poder, de destruir politicamente sua maior liderança, pela crise das instituições democráticas no país.
O antipetismo e a antipolítica, que ainda mobilizam uma parcela considerável dos eleitores teve na grande mídia um veículo privilegiado. Espero que tenham aprendido a lição de que não se brinca com a democracia, que não se pode golpeá-la, como se fez em 2016, utilizando as próprias instituições democráticas, como o Parlamento, para corromper o sistema democrático. O impeachment sem crime de responsabilidade, a deposição sem crime de uma presidenta honesta acelerou a corrosão do Estado de direito, desmoralizou as instituições por sua ação ou omissão (no caso do Judiciário) golpista e abriu espaço para que as forças mais retrógradas do país, que incluem, infelizmente, grande parte das nossas classes dominantes, tomassem de assalto o Estado (e infelizmente essa não é uma mera imagem literária).
Foi muito pedagógico ver parcelas das elites políticas e partidárias que promoveram o golpe de 2016, mas também setores empresariais que financiaram aquela aventura tresloucada, terem que recorrer ao homem público que quiseram destruir através de uma operação judicial fraudulenta e com cartas marcadas, uma conspiração antidemocrática, que envolveu parcelas significativas das instituições que deveriam zelar pelo Estado democrático de direito (Judiciário, Ministério Público, Polícia Federal), para que ele salvasse a democracia entre nós. Lula, mais uma vez, demonstrou sua grandeza como homem público e como ser humano, deixando para trás qualquer ressentimento, qualquer sentimento menor de revanche ou vingança, pensando, sobretudo, nas parcelas mais vulneráveis e carentes de nossa população, pensando, acima de tudo, que só na democracia esses setores podem lutar por conquistas e direitos, só em uma nação democrática as forças populares podem ter presença na vida política do país e alcançar melhorias para suas vidas.
Como o melhor produto, o filho mais bem acabado de nosso processo democrático, Lula, o menino pobre nascido em Canindé, o retirante, o engraxate, o metalúrgico, o líder sindical, o candidato a presidente três vezes derrotado, coloca a democracia como um valor acima de tudo e acima de todos e a exercita, em seu dia a dia, dialogando com todas as forças políticas, com todas as camadas da população, com todas as representações políticas de classe.
Diante de uma democracia corrompida pela prática cotidiana da mentira, do embuste, das fake news, pela falta de transparência na gestão pública, com a escandalosa novidade de um orçamento secreto, executado por quem não faz parte do poder Executivo, pela completa falta de diálogo com as demais instituições da República, com os demais entes da federação, pelo cotidiano desrespeito às leis e à Constituição, Lula, aos seus 77 anos, se colocou, mais uma vez, a disposição da sociedade brasileira, para, sobretudo, tornar a democracia algo palpável para a população, para que ela deixe de ser um mero conceito retórico habitando os céus do ideário político. Como disse em seu discurso, fazer da democracia igualdade de oportunidades, redução das desigualdades, superação dos preconceitos, distribuição de renda e riqueza, justiça social e fiscal, combate a violência do próprio Estado, o abrindo para a participação direta da população na tomada de decisões.
Com a sua terceira vitória, em eleições livres, diretas e limpas, Lula é a encarnação da própria democracia. O presidente que na altura de seus mais de oitenta por cento de aprovação, ao fim de seu segundo mandato, não caiu no canto da sereia antidemocrática de mudar a legislação para lhe permitir um terceiro mandato, o presidente que enfrentou dentro da lei a maior perseguição judicial, política e midiática que alguém já sofreu nesse país, que acreditou nas próprias instituições que o perseguiu, sai do pleito de domingo como um gigante moral e político, como a única força capaz de arregimentar os democratas, de todas as colorações políticas e ideológicas, visando desfacistizar as instituições e a sociedade brasileira. Não podemos aceitar espetáculos como o protagonizado pela Polícia Rodoviária Federal, nesse domingo, com seu diretor declarando voto publicamente, chefiando operações ilegais que visavam impedir que o eleitor exercesse o seu direito democrático de votar em quem quisesse.
Não se pode tolerar que agentes de inteligência e da Polícia Federal se envolvam em um episódio mal esclarecido de homicídio ocorrido em uma campanha a governador de estado, onde legalmente não deveriam se fazer presentes. Não podemos aceitar que uma deputada eleita, uma representante do povo, patrocine cenas de bangue-bangue em plena via pública, alegando uma agressão que não ocorreu, para perseguir de arma em punho um homem negro desarmado e ainda dê entrevista dizendo que não obedece a decisões jurídicas que a proibia de portar armas e, ainda assim, não tenha sido presa em flagrante como a decisão do TSE determinava. Esse Brasil das trevas, esse Brasil sombrio da violência, do ódio, do crime organizado no poder e infiltrado nas próprias instituições de segurança pública, esse Brasil das atividades ilegais e predatórias de madeireiros, garimpeiros, mineradores, empresários do agronegócio que realizam queimadas e invasões ilegais de terras indígenas ou da floresta, que enchem de veneno os pratos que as pessoas do mundo inteiro consomem, deve ficar para trás.
Esse Brasil do preconceito e da agressão contra adversários políticos, contra as mulheres, os negros, os indígenas, as populações LGBTQIA+, contra os nordestinos, esse Brasil da intolerância religiosa, da exploração empresarial da fé, da destruição do caráter laico do Estado, esse Brasil de um Estado militarizado e sob a tutela militar (um dos indícios mais visíveis da corrosão do Estado democrático), esse Brasil da apologia ao uso de armas, deve ser substituído por um Estado que promova a paz, a convivência respeitosa com as diferenças de todas as ordens, que combata o preconceito e a opressão, que não mais tolere o assédio moral de patrões no dia e a dia e em tempos de eleições (atitudes antidemocráticas que devem ser veementemente repudiadas, assim como a iniciativa de muitos empresários de transportes de deixar os eleitores a pé, nesse domingo). Lula não venceu apenas uma eleição, venceu uma brutal máquina de propaganda, a máquina do Estado e venceu porque as forças democráticas do país trabalharam para que isso acontecesse, por isso mesmo, a vitória de Lula foi a vitória do regime democrático, da democracia em sua expressão mais genuína, a expressão pública da vontade popular.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.