O amor fez a gente casar pela internet, enfrentar uma guerra e viver a fé sem medo de ser feliz
Muçulmana cearense despertou para a própria espiritualidade enquanto um bem-querer se firmava do outro lado do mundo
É uma casa simples em Missão Velha, interior do Ceará. Há um alpendre, uma janela e um rosa desbotado tingindo a fachada. Ali um casal conversa e desperta olhares. Ele tem traços pouco típicos da região – rosto ovalado, sobrancelhas grossas e nariz proeminente; ela está toda de preto e traja um hijab, cobrindo cabelo, orelhas e pescoço. São muçulmanos, e chegaram há pouco na localidade.
A presença é resultado de muitos fatos. Acontecimentos que beiram o inimaginável. Comecemos pela mulher. Faz 14 anos que Aminah Naham Alawaj recebeu um chamado. Estava num dia comum de oração quando percebeu uma ligação muito forte com Deus. “Senti uma emoção enorme, meu corpo começou a tremer, e até chorei”. A partir dali, despertou para outra espiritualidade, diferente daquela professada por toda a família.
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Hoje entende ter sido o Adhan – termo que significa “uma proclamação”, e representa a forma islâmica de chamar os muçulmanos para fazer as cinco orações obrigatórias diárias. Então ela deixaria de ser evangélica – há muito questionava a dinâmica da instituição – e se aprofundaria nos estudos sobre o Islamismo. Curiosidade antiga, inclusive. Donde já se viu uma religião que prega o amor ser retratada de forma tão cruel?
“Eu via todo mundo falando contra e achava estranho porque são três os livros sagrados: a Torá, a Bíblia e o Alcorão. Não imaginava um livro sagrado mandando o que as pessoas costumam dizer sobre os muçulmanos – decapitar, queimar, matar. Assim, resolvi estudar sobre”. Estudou e agiu. Nas redes sociais, disseminou saberes. As postagens versavam sobre conceitos, detalhes e curiosidades do universo islâmico. Começou a atrair leitores.
Um deles foi Fahd. Sírio de berço e morada, achou engenhosa a forma como aquela mulher ressoava a doutrina e a consciência humanitária, mesmo em uma nação tão distante e diferente da sua. Trataria de expressar a admiração. Uma curtida em cada post dela, o alicerce do validamento digital. Pouco depois, comentários, outro meio de aproximação. Não demorou muito para que a caixa de diálogo fosse ativada. A faísca tornando chama.
“Nossa história começou em 2011. Com meu aprofundamento na fé, fiz amizade com várias famílias na Síria. Conseguia doações e enviava para lá, diretamente para as pessoas. Aprendi o árabe sozinha e, assim, consegui conversar com ele quando tomou coragem de comentar nos meus posts”. E Fahd contou tudo para Aminah. A realidade da guerra na Síria, as perseguições, os bombardeios e dúvidas. Que futuro era aquele que se desenhava, voraz?
Ele não sabia, mas queria prever. Meses conversando, o carinho se multiplicando, amizade fortalecida, e então o pedido: “Casa comigo?”. Aminah não recusou, estava completamente envolvida. O contato e a companhia dele eram delicados. Ela sentia que, juntos, poderiam superar o mundo, as adversidades da lida diária, guerras internas e externas. O primeiro desafio, por sinal, já estava ali: como iriam casar naquela distância toda?
Da Síria à zona rural de Missão Velha são exatamente 9.294 quilômetros – e incontáveis voos. Pela internet, nada. A saída foi exatamente essa: casar via web. Era possível, Fahd conversou com os superiores religiosos. Aminah aceitou, daria tudo certo. Era ela se maquiando num quartinho da própria casa, o pai e a mãe informados a minutos de acontecer o enlace, e aquele friozinho bom na barriga tomando conta de tudo.
“Minha mãe ficou muito brava comigo, eu lembro bem. Não quis mais saber de conversar. Disse que eu não tinha avisado a ninguém, como poderia ter feito isso? Mas expliquei que era porque nem eu sabia que ia dar certo, foi tudo muito rápido. E se fosse mentira? E se o cara tivesse só me enrolando? Felizmente, nada disso aconteceu”. Tanto é que, após o casório, os dois trataram logo de providenciar passagens para o Oriente Médio. Precisavam se ver.
Lá se foi Aminah para Madri, depois para Istambul e, de lá, para Gaziantep, parte asiática da Turquia, fronteira com a Síria. Era a cidade onde se eles se viram e concretizaram o aconchego. Nem parecia que nunca tinham estado juntos. Aquela sintonia, aquele querer ficar. Apostar no amor, diziam os poetas. Apostar no amor. Gaziantep foi também onde passaram a morar depois de Fahd passar ilegalmente para a Turquia. Um sobrevivente.
Aminah também foi uma. Junto ao recém-marido, vivenciou uma das sensações mais horripilantes da vida. Diariamente acordando às 4h30 para a primeira oração do dia, naquela madrugada os dois levantaram às 4h. A gata da casa os acordou, e foi a salvação. Exatamente às 4h17 de 6 de fevereiro deste ano, os cômodos começaram a balançar, o centro da terra revirando tudo. Um terremoto de forte magnitude partiu casas ao meio, inclusive a do casal.
Pensaram na morte, ela estava bem ali. Mas não aconteceu para eles. Antes da estrutura desabar, abriram a porta para os gatos passarem e também passaram por ela. Dez graus negativos do lado de fora, apenas a roupa do corpo. Mortos e mais mortos espalhados pelas ruas, um caos. Esperança quase nula. O que fariam agora, para onde iriam? Bastou olhar para o lado e encontrar a resposta: precisariam ajudar a quem, com eles, teve chance de viver.
Após dias de apoio dado e recebido, um avião da Força Aérea Brasileira veio em socorro e trouxe os dois e mais centenas de gentes para o país. Não havia o que pensar. No novo destino teriam casa, comida e a chance zero de serem acometidos por desastres naturais daquela ordem. Haveria um pouquinho mais de sossego na alma, descanso do terror. Algum refúgio. Depois do Rio de Janeiro e de São Paulo, foram direto para Missão Velha.
Agora vivem naquela casa com alpendre, janela e rosa desbotado tingindo a fachada. É da mãe de Aminah. Mesmo com algumas facilidades no novo território, não está sendo fácil. O casal precisa de emprego, de mais dignidade. Ainda pretendem ter um filho – houve uma gravidez na Turquia e, na sequência, um aborto espontâneo – e fazer tudo conforme a fé ordena. Ela orquestrou e continuará a orquestrar tudo.
“O amor é isso: construído diariamente, passando por provações. E tem que ser realmente forte pra superar essa nossa fase de saber não saber o que vai comer amanhã, de não saber o que vai vestir, de ver o outro maltratado. Não é o amor fútil, de aparência. É o amor na sua coisa mais genuína. Um sentimento de você estar ali para o que der e vier”.
Alguém passa pela casa e observa o casal avulso. São a pátria um do outro. Sorriem.
Esta é a história de amor de Aminah Naham Alawaj e Fahd Alawaj. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor