Quando era criança, acreditava viver num mundo atrasado.
O atraso podia ser mensurado em meses e anos. Até longe nos anos 1990, os filmes não estreavam simultaneamente aqui. Demoravam a chegar. O brilho das estrelas de Hollywood também percorriam anos-Luz, e brilhavam aqui quando lá já tinham se apagado.
Era assim com quadrinhos, discos, produtos tecnológicos.
O noticiário falava de lançamentos miraculosos no mercado, que tardariam a aparecer por aqui. Existia um "lá fora", onde o futuro chegava antes, uma terra prometida do consumo, onde tudo era, invariavelmente, melhor e mais civilizado.
Revivi aquela sensação quando outros países começaram a vacinar suas populações e avançaram em suas campanhas de imunização contra a Covid-19. Por aqui, era como se estivéssemos atolados em algum lugar no passado. Um faroeste caricato, com violência, mortes, fanáticos, charlatães propagandeando curas milagrosas e baratas, óleos de cobra infalíveis, e gente pronta a ser enganada, por se crer mais esperta do que o resto.
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Ainda mais intensa foi a sensação, nas últimas semanas, quando começaram os jogos da Eurocopa. Não há um lance em campo que roube minha atenção. É a imagem de fundo que atordoa, com sua ironia: no Velho Mundo, o mundo já é novo, do tal "novo normal", onde torcidas podem mais uma vez encher estádios e, com certa segurança, as máscaras são deixadas de lado.
De amigos e conhecidos, a todo momento ouço os suspiros e as confissões de quem preferia estar por lá. Gente que planeja ir, para não mais voltar. É o desejo de habitar o mundo que anda em dia com o calendário. A ânsia de chegar lá não é tão grande quanto a de sair daqui. Imigrantes com a psicologia de refugiados.
No sábado passado, tive outra impressão forte de deslocamento, mas absolutamente distinta. Não de tempo, nem de espaço. Dessa vez, um deslocamento de dimensão.
Havia chegado o dia de receber a primeira dose de uma vacina contra a Covid-19, num posto de saúde afastado, no abrasante horário do meio-dia. Encontrei uma equipe simpática, animada e que puxava conversa como se eu fosse o amigo de um amigo, do tipo que você encontra no meio de um carnaval e instantaneamente se torna da família.
Na sala, a pessoa que ia me espetar fazia uma coreografia para mostrar o imunizante na agulha. Desejo, promessa e realização separados um do outro por poucos segundos.
Todo mundo vibrou e fez coro ao primeiro "Viva o SUS!". Ali, não havia nada que lembrasse o espírito sulfuroso, hidrófobo e paranoico, que minimiza a morte acamada e aplaude aquela que rescende a pólvora, sangue e medo.
Entre essa gente alegre, que contrapõe ao "não" teimoso um "sim" corajoso e tenaz, as fantasias de evadir-se ficam menos vistosas. É onde quero estar e aqui onde tudo isso está. Há um Brasil sofrido, mas imunizado contra o ódio e o atraso, que vive em 2021 e constrói seu futuro, de meses e anos além, de 2022 e para bem depois dele. É preciso calibrar o olhar para encontrar os olhares de quem vive nessa dimensão. Aquele cruzar de vistas em que se reconhece o outro - e até mesmo se apaixona.
Há quase 100 anos, o poeta modernista Oswald de Andrade publicou o "Manifesto Antropófago". Fala do Brasil, dos povos originários e originais, de devorar criativamente o inimigo; posiciona-se "contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico". Mais importante, o poeta ensina, e repete, no manifesto que "a alegria é a prova dos nove".
"A alegria é a prova dos nove".
"A alegria é a prova dos nove".
Como podemos ter esquecido?