Por que vivemos a era da saudade

Legenda: Edmilson, que faz sentir saudades há um ano
Foto: Acervo pessoal

Quando se contar a história dos dias em que vivemos, podemos esperar relatos sobre os acontecimentos políticos, sociais e econômicos, mensurados por um sem-fim de estatísticas. Talvez esses livros, escritos anos no futuro, não documentem uma constante inegável do presente, imprecisa e impossível de quantificar. É o que o escritor francês Roland Barthes chamou de “presença da ausência”. De tão presente em nosso tempo, poderia bem defini-lo como a era da saudade.

Nunca se sentiu tanta saudade. Dos mortos, dos vivos, da própria vida. 
 

Num período de carências exacerbadas, ela é abundante. A saudade se espalhou mais do que a doença e sobreviverá a ela. É difícil imaginar uma casa que não tenha conhecido sua marca, desde que a pandemia ocupou o cotidiano de todos, em março de 2020. Ganhamos novas, numerosas e frequentes, a se somarem àquelas que cada um já carregava. 

Ainda assim, o sentimento escapa às réguas dos saberes técnicos. Não consta nos indicativos econômicos (que dão testemunho de outras faltas, perigosamente graves). Mas, de tão concreta, sua sombra se faz adivinhar entre outras contabilidades. Ontem, por exemplo, sentiram-se irremediavelmente 4.211 novas ausências no país. Cada uma delas, sabe-se lá quantas saudades provocou. A matemática não dá conta de traduzir essa grandeza.  

Saudades como essas chegaram e ficarão. Farão os olhos marejarem, de tempos em tempos, como os movimentos das marés, ora altas, ora baixas. 
 

Há outras que encontram alívio na esperança de não serem definitivas, mas são fustigadas pela incerteza. É a saudade que se estende de uma ponta a outra no vão que separa pais e filhos, famílias, amigos e amantes. Separações forçadas pela necessidade de manter cuidados que preservem uns e os outros de uma doença traiçoeira, que se espalha na aproximação dos corpos.

As despedidas são o início de incertezas que parecem mais ameaçadoras do que antes. Houve quem tenha prometido voltar, e o que seria breve tornou-se definitivo. Outros precisaram suspender o que faziam, adiar reencontros. A doença lhes exigiu isolamento, que deixassem passar os dias até se ter um pouco mais de segurança. Tempo de espera, de ansiedade e de receio do nunca mais.     

Parece ser próprio desse sentimento ser uma coisa e seu contrário. É radicalmente pessoal, pois cada saudade tem uma história, mas também universal, pois, mesmo aqueles que a negam, conhecem seus dissabores. 

Sente-se saudade das pessoas, do que vivemos com elas, mas também de lugares, de situações. De toques, cheiros, do silêncio partilhado, de ouvir canções com o outro, de repetir coisas que nem sabíamos gostar tanto. Ao ser invadido por esse sentimento, não poucas vezes, descobrimos o inventário daquilo que amamos.   

Poucas línguas foram capazes de traduzi-lo com precisão. A palavra que herdamos dos portugueses tem uma origem incerta, uns dizem vir do grego antigo, daquela que nomeava a solidão; outros, que sua matriz é árabe, da forma como chamavam a melancolia.  

Nela se reconhece, de fato, solidão e melancolia, mas há algo mais que aí não está dito. Abaixo da superfície, encontra-se justamente aquilo que a alimenta, porque a saudade parece feita de felicidades vividas, recobertas por um véu de tristeza.  

Um ano após a morte de meu pai, levado no meio de uma pandemia que nos rouba a despedida apropriada, fiquei às voltas com a palavra, para dar conta do que ela significa.

No dicionário, encontrei que a saudade também nomeia um tipo de canção tradicional dos marinheiros. A que se canta hoje, pode-se dizer, é a de embarcados à deriva, cercados da imensidão desconhecida e sem terra à vista.

Legenda: O reencontro de Ulisses e Penélope, em gravura de 1828, do inglês Francis Engleheart
Foto: Royal Academy

A eles, deve-se lembrar os feitos de Ulisses. Movido pela saudade da esposa, do filho e de sua terra, o herói grego navegou por 10 anos para vencer monstros e superar perigos que em muito lhe excediam as forças - mas não o engenho. Penélope, por sua vez, exerceu a paciência, na esperança do reencontro com o marido.  

Aos que hoje navegamos por essas águas agitadas, que se alcance a sorte de Ulisses e a paciência de Penélope. Que se finde essa era das saudades excessivas e que cada um carregue consigo apenas aquelas que serão eternas enquanto durarmos.