Viver numa pandemia tem algo de "O Feitiço do Tempo", clássico da Sessão da Tarde em que o personagem de Bill Murray é constantemente jogado de volta ao começo do mesmo dia. Parece que nunca saímos de março de 2020. Mas eis que o produtor Rick Bonadio, ao comentar o Grammy 2021, rompeu o ciclo e abriu uma porta para um passado mais remoto, de uns 20 anos atrás.
Comentando a premiação de domingo (14), ele se deteve na reação do público brasileiro nas redes sociais após Cardi B dançar funk brasileiro no Grammy. No fim de sua apresentação com Megan Thee Stallion, a cantora usou um trecho do remix de "WAP", feito pelo DJ carioca Pedro Sampaio. "Já exportamos Bossa Nova, já exportamos Samba Rock, Jobim, Ben Jor. Até Roberto Carlos. Mas o barulho que fazem por causa de 15 segundos de funk na apresentação da Cardi B me deixa com vergonha".
Bonadio deveria saber que o barulho provocado por sua declaração seria ainda maior do que os aplausos pela conexão brasileira de Cardi B. Mas o produtor que lançou Mamonas Assassinas, NX Zero e outros preferiu ir às redes sociais e complementar: "Precisamos exportar música boa e não esse 'fica de quatro!'". Tomou porrada, claro, e apagou a postagem.
Anitta criticou Bonadio. "Estamos falando de um ritmo que sustenta milhares de famílias sem prejudicar a ninguém", escreveu num fio no Twitter. "Por que vocês acham que essa galera do business não ousa falar de outros ritmos? Porque existem grandes empresários por trás... aí a briga dói no bolso... melhor não, né? Mas já com os funkeiiiirosss... quem vai brigar por eles??".
A funkeira, uma verdadeira superstar brasileira, fala do alto do currículo que inclui parceria com o citado Roberto Carlos, presença em disco de Madonna e elogios feitos por Stuart Murdoch, líder da banda indie Belle & Sebastian.
Falar sobre preconceito contra o funk não é um exagero, goste dele ou não. Foi assim desde os anos 1990, quando o ritmo tentou furar a bolha do pop que o mercado botava nas prateleiras das então existentes lojas de discos. Havia sim um componente racista e de preconceito de classe contra o "som de preto, de favelado". A "vulgaridade" de que o acusam ainda hoje, convenhamos, nunca foi exclusiva do gênero. Ao tirar as bundas brasileiras do palco do Grammy, também deveriam sair as gringas.
Cruzadas moralistas e esnobes contra o funk deveriam ser um discurso superado. Afinal, é um dos gêneros dominantes das paradas brasileiras. Toca em qualquer festa que se vá e virou "hit família" em tempos de luta pela vacina contra a Covid-19.
O discurso de Bonadio não poderia ter sido dito em um contexto menos apropriado: a premiação da indústria fonográfica, onde entra quem vende e não necessariamente quem é "artista de verdade". O que o produtor certamente sabe é que o pop é uma "festa estranha com gente esquisita". Há ali artistas de talento e picaretas, gente que ralou e porcarias customizadas. Há música boa, que te acompanhará por toda a vida, e aqueles processados que, no futuro, serão tocados no fim de festa, quando as tosqueiras do passado são a pedida, movida a bebida e saudosismo.
Exportar não é uma questão apenas de desejo ou de qualidade. Lá fora, precisam se interessar pelo que se oferece. E o fato é que, sim, o Brasil exporta música, boa e ruim, como muitos países. No Grammy, a presença brasileira pode ter sido apenas de 15 segundos de funk, mas a música do País se espalha não apenas pelas paradas do pop. Também ressoa em rádios especializadas, circuitos independentes, pequenas casas de shows.
Não se pode ignorar as condições do mercado. A Bossa Nova emplacou quando o Jazz, um gênero nada alheio a ela, era um filão comercial forte. O funk chega no topo do pop mundial por vias semelhantes, porque se alinha bem à música produzida no momento.
O fato é que a música boa do Brasil, seja ela funk, bossa ou o que for, não precisa da validação internacional. Quem são Elis Regina, Luiz Gonzaga e Emicida para o grande mercado lá fora? Em sua reclamação, o produtor legitima o mesmo deslumbre que condena nos fãs ruidosos do funk.
De certa forma, ao entrar na briga, Anitta parece ter aceitado o convite de voltar no tempo, de quando era preciso defender o funk de um figurão das poderosas gravadoras. O funk hoje não é o peixinho acuado. Por seus méritos e feitos (nem todos bonitos), hoje o gênero nada com outros tubarões. Mas deve-se reconhecer: a cantora faz uma defesa legítima dos seus e, com má vontade, haverá quem ache o suficiente para chamá-la de corporativista.
O mesmo rótulo não caberá a Bonadio. Afinal, ao fazer uma defesa da música boa, ele certamente não está falando de sua cartela de produções, que, entre alguns acertos, figuram Rodolfo & ET, meio mundo do emocore e muita gente branca e bonitinha, mas carente de personalidade e de apelo para exportação.