A importância de contemplar o que mais amamos

A arte traz lições de como a oração, com ou sem destinatário, é uma forma de se conectar consigo mesmo

Legenda: Arte em madeira no Centro de Cultura Popular Mestre Noza, em Juazeiro do Norte
Foto: Fabiane de Paula

Em abril, acompanhei a via dolorosa de um amigo, acossado pela Covid-19. As atualizações diárias de seu estado de saúde traziam o testemunho de sua fé. Até então, nunca havia pensado nele como um homem "devoto". Mas o informe, produzido de amigos para amigos, era claro: “Ele tem fé no poder das rezas, das energias e das vibrações positivas. Pedimos intensificação nas orações”. 

As palavras chegavam a um número grande de pessoas. Éramos um grupo heterogêneo em temos de fé. Uns eram devotos, como ele, das energias e vibrações positivas; outros, do Deus da Bíblia, codificado pelos doutos das Igrejas ou pela tradição do povo; muitos se voltaram aos seus orixás; e  há aqueles que frequentam habitações do sagrado particulares e únicas. As palavras chegavam também aos que não esperam que outra vida, no além ou de volta à terra, se siga a essa.   

Numa longa conversa com um amigo em comum, confessei uma verdade pessoal, de forma jocosa, como quem ri para disfarçar o desespero. “Cancelei até a minha assinatura do ateísmo”. Impotentes diante do destino, concordamos com o que estava nas entrelinhas daquela piada: o que restava era rezar. 

As expressões de amor, que se seguiram à morte de nosso amigo, deram provas de que as energias em que ele acreditava, de fato, tinham poder. Foram elas que nos uniram em torno de sua vida e que, hoje, nos mantém unidos por sua memória. 

A experiência de participar dessa corrente esperançosa, de cancelar ou suspender uma assinatura vitalícia de dúvidas, não fez de mim uma ave rara. Tenho certeza de que, diante do presente, será até mesmo fácil encontrar quem se permita ser incoerente com suas descrenças e ore, reze ou tente emanar algum tipo de poder invisível, a partir dos pensamentos e sentimentos.

A experiência de orar me pareceu menos estranha graças a um teólogo inesperado: o cantor, compositor e escritor australiano Nick Cave, famoso por músicas e histórias sombrias. Em seu blog The Red Hand Files, ele responde a questões incomuns de seus fãs. Um deles indagou: "Para quem orar?".

Legenda: Nick Cave: das orações em forma de música ao inusitado exercício da teologia na era da Covid-19
Foto: Kerry-Brown/ Divulgação

Cave afirmou que não havia necessidade de que as orações tivessem um destinatário. “É tão valioso orar em sua descrença, quanto em sua crença”, escreveu - e me ensinou. "Uma oração nos fornece um momento em que podemos contemplar as coisas que nos são importantes", explicou.

De fato, foi isso o que fiz, em abril.

"O ato de orar nos pede algo e, ao fazê-lo, oferece muito em troca - pede que nos apresentemos ao desconhecido como somos, desprovidos de pretensão e afetação, e que contemplemos exatamente o que amamos. Por meio dessa conversa com nosso eu interior, confrontamos a natureza de nossa própria existência", respondeu Nick Cave, ao fã Patrick, de Melbourne.

Nick Cave lançou, em 2020, um disco ao vivo chamado "Idiot Prayer" (algo como "a oração idiota"), e foi por isso que Patrick o provocou com sua pergunta. Neste ano, editou ao lado de Warren Ellis o belíssimo "Carnage", um álbum repleto de silêncios, densas imagens poéticas e o rimbombar de uma voz divina. Cada canção ali é também uma oração, como Nick Cave as entende, sem haver sempre alguém no altar.

Há algo nele que diz mais de nossa relação com o divino do que o confuso debate religioso atual, da fé com CNPJ e tratada como uma mercadoria. 

O disco me fazer pensar repetidamente nas orações como expressões do amor, um sentimento que não sucumbe a dor. Em sua beleza de corte preciso e seco, despojada de vestes excessivas e orgulhosas, aquelas canções me lembraram os santos talhados pelos artistas da tradição popular, como aqueles que trabalham e criam no Centro de Cultura Popular Mestre Noza, em Juazeiro do Norte.

Meu amigo Gilmar de Carvalho, o padroeiro destas linhas, andou por ali e certamente sentiu a energia que emanava dos gestos e das obras.

Quando eu mesmo andei por ali, entendia menos ainda das orações. À época, não reconheci os sinais do sagrado. Cegueira minha, claro. Dostoiévski escreveu (numa apropriação bíblica) que "a beleza salvará o mundo".

"Liberados de nossa certeza", escreveu Nick Cave sobre o presente cheio de dúvidas sob uma pandemia, "apresentamos nossa oferta mais pura ao mundo - nossas orações". Essa é uma exortação a contemplar o amor, os nossos amores. É esse o exercício necessário para talhar com quais se pode salvar o mundo e se manter a salvo dele.