Quando eu era criança e adolescente queria virar adulta logo porque eu tinha vontade de ser forte, viajar e criar coragem pra escrever ao mundo palavras guardadas, em mim e nos meus diários. Naquela época, entre meus 9 ou 10 anos de idade, eu achava que existia uma faculdade que ensinava as pessoas a serem escritoras, e era ela que eu queria cursar naquele tempo. Por isso eu queria crescer logo.
Eu imaginava que quando eu cursasse minha "faculdade pra ser escritora" eu também perderia o "medo" - ou vergonha? - de transformar em histórias as minhas vivências, sentimentos, pensamentos, que desde aquela época já eram intensos mesmo em seus detalhes. Desde criança eu sabia que queria viver a vida entre a minha própria escrita, mas não sabia nada além disso.
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Pensei nisso muitas vezes na vida, como quando estive, há poucos dias, na Pinacoteca do Ceará, admirando as incontáveis obras que nos tiram do chão, do eixo, nos arrancam lágrimas, risadas; orgulhos, amor e dor. Revoltas. Memórias. Entre as muitas paradas que dei, fiquei alguns minutos sentada lendo, sentindo e lembrando, de frente a um painel que me recordou o quanto lidar com palavra escrita sempre esteve nos meus planos de vida: o “Agitrop”, de Aline Albuquerque, presente na mostra "Se Arar", integrante da expisção "Bonito pra Chover". Dali, ganhei mundo na mente.
Pensei no futuro, voltei ao passado...
Entre as recodações, lembrei que, em uma das minhas tardes de delírio entre a infância e a adolescência, procurando palavras, encontrei guardada numa arca - aquele armário antigo típico da casa de avós - uma coleção de livros todos iguais, de capas duras, vermelhas, trabalhadas com detalhes pelos quais a gente passava as mãos para sentir seus formatos. Parei ali por alguns minutos.
Aquela era uma coleção completa do escritor Érico Veríssimo, comprada por meu avô anos atrás, guardada pela minha avó desde sempre; estendi a mão e peguei a obra "Clarissa". Naquela tarde de devaneio, sentada no chão, li grande parte do livro e fiquei impressionada por saber que a história de uma menina comum, que nem era princesa, vivendo sua vida sem grandes eventos, aventuras de heróis, amores dramáticos ou suspenses poderia virar um livro.
Naquele tempo eu não era capaz de fazer bem as associações que hoje consigo, sobre a Clarissa, sobre a minha vida, sobre ser adulta ainda criança. Mas eu já me imaginava feito a personagem, que assim como eu, entrava em vários momentos dentro de um micromundo, fantasiando a vida em meio a uma multidão de adultos que pareciam sempre atordoados.
Pois bem: cresci, entre as fortalezas e fragilidades típicas da metamorfose do ser e expressar-se no mundo, e chegou um certo tempo em que entendi o quanto nós, adultos, agimos embasados na criança que um dia fomos e que permanece viva - a psicologia, a arte e a literatura muito nos falam sobre isso. Desde as histórias que contamos, às que guardamos e aos sentimentos aos quais nos habituamos a sentir. Como se estivessem em cartilhas de escola.
Hoje, enquanto escrevo e me cerco dos privilégios que tenho de ter criado coragem para transpor entre palavras tanto - mas nem tudo ainda - do que sei, sinto e penso, também percebo o quanto minhas expressões chegam referenciadas pelos inúmeros e incontáveis tempos entre os quais vivemos, sonhamos; perdemos e ganhamos.
Virei adulta e ainda hoje acho que a criança que fui era gigante, forte, destemida e tinha todas as coragens que naquela época achava não ter. Mesmo quando havia dor, ainda mais quando tinha amor. E se quando crianças nossas coragens eram sempre testadas, entre as expressões de medos bobos (?), hoje muito mais nos testa a constante obrigação de "ter coragem", como se fosse possível aprender a vida feito lição de casa.