Nos idos das décadas de 80/90, ainda criança, eu tinha um grande desejo que precisei manter guardado depois de ser repreendida por narrativas sobre ser mulher (direita?). Só porque eu queria muito ter uma meia arrastão, aquelas meias-calças que são estilo abertinhas.
Desde pequena, sempre achei deslumbrante usar meia-calça, shortinho e all star colorido. Naquela época, eu não tinha dinheiro para essas coisas, mas tinha muita imaginação - e bom gosto também. Livre por dentro e silenciosa por fora, passei a idolatrar aquelas meias apenas em imagens que eu via de modelos brilhantes mundo afora.
A vida seguiu, eu desisti das meias, e uns poucos tempos atrás, enquanto eu escrevia minha tese de doutorado e perdia-me (me encontrando) entre as inúmeras pesquisas sobre cidade e arte urbana, escrevi um trecho da pesquisa discorrendo sobre os nossos corpos na rua. E desde então me pego pensando nas muitas perspectivas de estarmos no meio do mundo, corpo e alma.
Claro que na pesquisa eu tratava de uma forma diferente da que eu pensava quando criança, mas nesses 2 tempos distintos eu falava sobre a liberdade de ser quem queremos ser, quem somos. O poder expressar em gestos, vestimentas, escolhas o que há por dentro. Falei sobre como a falta de representação social dos distintos corpos na rua também nos inibe, nos desencoraja e nos maltrata.
Mas nesses dias, no meio da rua, caminhando rumo ao caloroso Carnaval de Fortaleza, voltei a devanear sobre os nossos corpos e como é lindo vermos a liberdade viva. Pessoas de meia arrastão no meio da rua, da praça, na calçada, na areia. Presentes! Ver tantos e lindos corpos de coragem - magros, gordos, brancos, negros, altos, baixos, imigrantes, limitados ou não - me trouxeram sorrisos-alívios. Ver a vida livre pulsando na rua nos inspira e fortalece para que tenhamos cada vez menos medos.
Medos de sermos julgados pelo que realmente somos, pelos nossos corpos; medo de estarmos com nossos corpos na rua e, principalmente, nós mulheres, sermos assediadas, com gestos, palavras, olhares, até.
Pés descalços, caminhando pela areia do aterro em festa, eu também pensava em como essa conexão corpo-terra-coletivo nos ampara, nos dá uma sensação de justiça social.
No meio da praia lotada, mulher de maiô (e meia arrastão, claro), homem de sunga, além de muita música, sorrisos, abraços e esperança renovada depois de uma pandemia que nos assolou e nos cravou sequelas para sempre, o movimento dos nossos corpos livres é um presente.
E a melhor festa é que permenece viva dentro de nós. Mas sentir, pelo menos por alguns momentos da vida, que estamos seguros, das violências que chegam de tantos tipos e lados a nós, é uma graça alcançada. Que o Carnaval - feliz, respeitoso, saudável e tranquilo -, se faça mantra, todos os dias, dentro e fora de nós. Axé!