Isolamento social, Drummond e Gilmore Girls: a travessia que me levou a revisitar saudades

Testei positivo para Covid-19 e, entre os infinitos sentimentos que ainda tenho para contar sobre esse tempo, postei-me a redescobrir memórias

Legenda: Numa dessas noites de pouco sono, peguei o celular e pronto: fui novamente parar na fictícia Stars Hollow, via Netflix, mergulhada entre as garotas Gilmore, seus dilemas, suas (in)certezas e expressões de amor
Foto: Divulgação/Instagram

Uma dobra no tempo corrido. Uma pausa na pressa constante que me toma fala, mente e corpo. Há alguns dias, testei positivo para Covid-19 e, além dos sintomas gripais, todos leves, em função das 3 doses de uma vacina que salva e devolve vidas, precisei deparar-me com tantos dos meus medos de vida enquanto esperava isolada 12 dias se passarem. Mas esse texto não é (exatamente) sobre medo, é sobre a coragem de encontrar-me comigo.

Tive muitos privilégios enquanto doente, estruturais e também emocionais. Dentre elas, a companhia de minha mãe do outro lado da porta fechada, as intensas mensagens de amor e amizade que recebi absolutamente todos dias, e uma janela imensa de paisagens a se rasgar entre as quatro paredes que me protegiam do mundo, e vice-versa. Mas e a coragem? Onde entra? Na audácia de revisitar minhas memórias e também minhas saudades. 

Entre as visitas, ancorei meu rumo em duas narrativas que mexem comigo porque falam de tempo, amores, certezas e atravessamentos de si, neste mundo que, de tão paradoxal que é, torna-se uma eterna travessia entre quem somos, quem seríamos se… quem nos tornamos a cada experiência de vida. Entre os dias de silêncio, reencontrei algumas de mim quando deparei-me entre trechos de Gilmore Girls e Carlos Drummond de Andrade.

Janela de paisagens abertas
Legenda: Minha janela foi apenas um dos meus tantos privilégios durante o isolamento social
Foto: Dahiana Araújo

Eu mesma não escondo de ninguém na vida que Gilmore Girls é minha “série de cabeceira”. Já vi 2 vezes completa e vez ou outra escolho um episódio aleatório para assistir. E numa dessas noites de pouco sono, peguei o celular e pronto: fui novamente parar na fictícia Stars Hollow, via Netflix, mergulhada entre as garotas Gilmore, seus dilemas, suas (in)certezas e expressões de amor. 

No quarto, de portas fechadas, e cortinas esvoaçantes, a pressa dos meus pensamentos, ansiosos e acelerados, também escavou boas memórias, daquelas que a gente não lembra simplesmente porque nos damos a desculpa do nosso tempo afoito. Então, parece que a gente vai esquecendo não apenas o que vivemos, mas também quem somos.

Da saudade que tenho das Gilmore, relembrei os diálogos acelerados, que soam bem aos meus ouvidos e acompanham muito a narrativa apressada de minha mente, e de minha fala também. Quem me conhece sabe. Falo rápido, penso ligeiro e junto mil coisas dentro de mim, embaralhando mundos na cabeça e no coração. Feito elas. 

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Não sou muito fã do revival "Um ano para recordar", como gosto da série inicial, mas ele realmente faz lembrar a nossa própria história quando rememora a travessia de personagens como Emilly, Rory e Lorelai. Então, acabei encontrando-me dentro do 4º episódio, quando a neta revisita a casa dos avós. Não há como não se emocionar com o marco temporal e simbólico da memória no qual aquelas paredes se transformam. Na saudade expressa naqueles diálogos que se refazem no sofá da sala, agora vazia.  

Ainda no isolamento, revisitei também poesias e poetas de cabeceira. Esses são muitos, mas Drummond se destaca em tempos de incertezas de vida. Entre suas palavras de amor e dor, tanto nos fala sobre "o sentimento do mundo", com narrativas ora cortantes, ora revigorantes que nos trazem e levam entre distintas épocas enquanto passeamos por suas estrofes. 

Com Drummond, relembrei os tempos de criança, quando minha melhor companhia pós-almoço era um antigo livro de poesias que encontrei perdido num baú, também na casa dos meus avós, a casa-abrigo que tenho para sempre em mim. No isolamento, procurei na internet até reencontrar-me com um texto que, como tantos outros, falam de passado, mas se encaixam tão bem no que temos neste presente, o "nosso tempo":

 

"Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
[...]
Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas
e me revolto".

 

Quantas coisas não somos! 

Quantas coisas temos sido, em meio ao silêncio o qual citou o poeta, às esperas e, sim, às saudades. Se há mais de 2 anos já convivemos a dor dos abraços reduzidos, sentir a falta dos olhos-nos-olhos entre os quais amamos na vida também nos faz abrir os olhos de dentro e rememorar Drummond ao nos vermos enquanto aqueles seres "partidos". Porque há tempos, sim, estamos aos pedaços. Mas vivos! Intensos. Que alívio… realmente, não somos as coisas.