Consórcios de imóveis: por que os lances chegam a 90% do valor e o que isso significa?
Um ouvinte, a quem agradeço a participação, trouxe uma pauta intrigante: em grupos de consórcios de imóveis, há casos em que os lances mensais chegam a 89% ou 90% do valor da carta de crédito. Ele questiona: isso é permitido? Faz sentido financeiro? E por que está acontecendo cada vez mais?
A resposta passa por três dimensões: a legislação, a lógica econômica dos consórcios e os riscos para quem participa.
Como funciona o lance no consórcio
O consórcio é uma forma de autofinanciamento coletivo, regulada pela Lei 11.795/2008 e fiscalizada pelo Banco Central. Cada grupo forma um fundo comum para compra de bens. A contemplação — ou seja, o direito de usar a carta de crédito — pode ocorrer de duas formas:
- Por sorteio: aleatório, sem custo extra.
- Por lance: o participante antecipa parte das parcelas futuras. O maior lance vence (podendo haver regras de desempate).
O lance funciona como um leilão reverso: quem abre mão de mais parcelas antecipadamente consegue ser contemplado antes.
É legal dar lances tão altos (80% ou 90%)?
Sim, é legal.
A legislação não limita o valor do lance: ele pode chegar até 100% do valor da carta de crédito. Quem decide os critérios de aceitação e desempate são as administradoras, previstas em regulamento aprovado pelo Banco Central.
O que surpreende não é a legalidade, mas sim a racionalidade econômica: dar um lance de 80% a 90% significa praticamente abrir mão do benefício de pagar ao longo do tempo. Nesse caso, o consórcio se aproxima de uma compra à vista parcelada com taxa de administração.
Por que os lances estão tão altos?
Há várias razões para esse fenômeno:
Pressa em obter o bem
O consórcio tradicionalmente é visto como planejamento de médio e longo prazo. Mas muitos consumidores entram querendo ser contemplados logo. Aumenta, então, a disputa nos lances.
Alta competição dentro dos grupos
Com o mercado imobiliário aquecido e maior procura por consórcios (já que os juros do financiamento tradicional continuam elevados), os grupos ficam mais competitivos.
Resultado: só consegue carta rápida quem dá lances altíssimos.
Falta de clareza para o consumidor comum
Muitos consorciados não percebem que, ao dar um lance de 80% ou 90%, estão praticamente abrindo mão da vantagem financeira. Às vezes fazem isso apenas para não esperar, sem avaliar se a pressa compensa.
Estratégia de alguns investidores
Alguns participantes usam o consórcio como forma de acesso a crédito barato. Dão um lance muito alto, garantem a carta e depois usam o bem como forma de aplicação ou revenda. Para eles, o custo da taxa de administração é aceitável diante da liquidez imediata. Porém, como um lance de 90% pode ser interessante para um investidor?
Para a maioria das pessoas físicas, dar um lance de 90% não compensa: é quase como comprar o imóvel à vista e ainda pagar taxa de administração.
Mas para alguns investidores, pode haver estratégia:
- Acesso rápido ao crédito imobiliário: ao dar um lance alto, ele garante a carta de crédito no início. Isso é útil porque a carta é vista como dinheiro à vista na negociação do imóvel.
- Liquidez imediata com custo controlado: em vez de depender de financiamento bancário (com juros altos), ele trava a taxa de administração do consórcio, que costuma ficar entre 15% e 20% do valor da carta, diluída ao longo do plano.
- Alavancagem patrimonial: o investidor pode comprar o imóvel com a carta e depois revender, alugar ou até usar como garantia em outras operações.
Por exemplo, imagine um investidor chamado Tom. Ele tem R$ 360 mil em caixa e entra num consórcio de R$ 400 mil.
No primeiro mês, ele dá um lance de 90% (R$ 360 mil).
Ele é contemplado imediatamente e recebe a carta de R$ 400 mil.
Compra um imóvel à vista com esse crédito.
O que ele ganhou?
Alavancagem: com R$ 360 mil próprios, ele já controla um bem de R$ 400 mil. São R$ 40 mil a mais de patrimônio na largada.
Liquidez na negociação: como pagou com carta de crédito, o vendedor tratou como compra à vista e deu 5% de desconto. O imóvel que custava R$ 400 mil saiu por R$ 380 mil.
Patrimônio maior que o aporte:
Ele desembolsou R$ 360 mil.
Comprou um bem que vale R$ 380 mil.
E ainda tem R$ 20 mil de sobra no consórcio (que podem ser usados para despesas de escritura ou para abater parcelas futuras).
Claro, ele ainda terá de pagar a taxa de administração do consórcio, mas mesmo assim pode ter valido a pena: em vez de gastar os R$ 400 mil sozinho, usou R$ 360 mil e conseguiu mais patrimônio de forma rápida.
O risco
Esse tipo de jogada só faz sentido para quem: tem capital disponível para o lance alto; enxerga a carta de crédito como forma de alavancagem e não apenas como substituto da poupança e consegue avaliar bem o imóvel e negociar para extrair desconto.
Se a pessoa não tiver esse perfil, o risco é gastar quase todo o dinheiro e ainda assumir o custo do consórcio sem real vantagem.
Em resumo: para o consumidor comum, um lance de 90% é um desperdício. Mas para o investidor com liquidez e estratégia, pode ser uma forma de comprar com desconto, ganhar alavancagem e transformar a carta de crédito em ferramenta de negociação.
Como se proteger e tomar boas decisões
Avalie sua pressa
Se você precisa do imóvel imediatamente e tem capital alto, talvez o consórcio não seja a melhor via. Financiamento ou compra direta podem sair mais baratos no fim.
Veja também
Leia atentamente o regulamento
Cada administradora define regras de desempate, percentual mínimo de lance e até a modalidade (fixo, livre, embutido). Entenda o regulamento para não se surpreender.
Simule cenários
Calcule quanto pagará efetivamente (incluindo taxa de administração e fundo de reserva) se der um lance alto. Compare com a compra à vista ou financiamento.
Desconfie de promessas fáceis
Se o vendedor disser que você "garante contemplação no primeiro mês" com certo lance, questione. Não existe garantia absoluta: depende do regulamento e da disputa no grupo.
Planeje o consórcio como poupança, não como loteria
O verdadeiro benefício do consórcio está no planejamento disciplinado ao longo do tempo, e não em tentar antecipar com lances exorbitantes.
Os lances de 89% a 90% do valor do imóvel em consórcios são legais, mas representam uma distorção do propósito original do sistema. Estão crescendo por conta da pressa, da competição entre grupos e da entrada de investidores que tratam o consórcio como alternativa de crédito.
Do ponto de vista do consumidor médio, dar um lance tão alto raramente compensa: é como pagar quase tudo à vista e ainda assumir custos adicionais. A recomendação é avaliar bem as finanças pessoais, entender o regulamento e não se deixar levar pela ansiedade de ser contemplado rapidamente.
Em resumo: sim, é permitido — mas nem sempre é inteligente.
Pensem nisso e até a próxima!
Ana Alves
@anima.consult
animaconsultoria@yahoo.com.br
Economista, Consultora, Professora e Palestrante