Reduzir o tratamento da depressão a um ato medicamentoso é um descuido e um maltrato

No tratamento da depressão, precisamos ampliar o campo de intervenção para além da bioquímica de responsabilidade exclusiva dos psiquiatras, para refletir sobre o que ela revela do estilo de vida, de comportamentos e do meio ambiente em que vive o individuo portador deste distúrbio

Foto: Natinho Rodrigues/SVM

Neste mês de setembro amarelo, dedicado à prevenção ao suicídio no Brasil, apresentarei algumas reflexões que contribuirão para a compreensão do fenômeno, que atinge mais de um milhão de pessoas anualmente. Estima-se que, em média, 38 pessoas cometam suicídio diariamente. A compreensão deste distúrbio pode nos ajudar a lidar com esta situação

Quando sonhamos que perdemos alguém querido, acordamos chorando, o coração batendo e a respiração acelerada. Para nosso cérebro, tudo é real e demoramos a perceber que era só um pesadelo. Entretanto, o nosso cérebro reagiu como se fosse uma realidade. As ideias, suicidas muitas vezes presentes na depressão demonstram um desequilíbrio das principais monoaminas cerebrais, como serotonina, dopamina e norepinefrina. 

Quando a produção destas substâncias está comprometida, a depressão se instala. 

A psiquiatria dispõe de muitos medicamentos antidepressivos com excelentes resultados terapêuticos. No tratamento da depressão, precisamos ampliar o campo de intervenção para além da bioquímica de responsabilidade exclusiva dos psiquiatras, para refletir sobre o que ela revela do estilo de vida, de comportamentos e do meio ambiente em que vive o individuo portador deste distúrbio. 

Reduzir o tratamento da depressão a um ato medicamentoso, sem incluir uma terapia de apoio que permita ampliar a consciência do portador e torná-lo corresponsável do seu tratamento, é um descuido e um maltrato. 

Muito do que sentimos em nosso corpo físico, é a expressão do que ocorre em nosso cérebro, no nosso inconsciente. Não veja no sintoma, numa gastrite, numa depressão, um sinal de fraqueza ou ameaça à vida, que precisa ser eliminado a todo custo e, sim, uma comunicação inconsciente, alertando para os ajustes necessários na sua vida pessoal, familiar e profissional. A psicologia nos alerta que um sintoma é a expressão visível de um processo invisível.  

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Na depressão, os sintomas graves são as ideias de morte seguidas de tentativas de suicídio. Quando estamos imersos em conflitos e contextos tóxicos em situações complexas, todo o nosso ser sofre. Perdemos o horizonte, perdemos a esperança. 

Quando perdemos a alegria de viver, a vida perde seu brilho e nos sentimos num beco sem saída, no fundo do poço. Nosso cérebro, quando percebe que perdemos a alegria de viver, que a vida perdeu seu brilho, sua razão de viver, ele alarma como uma sirene de incêndio, alertando para o risco maior de morte e só desliga quando o perigo passa. 

É o mesmo que acontece quando a panela de pressão começa a apitar. Ela indica que a pressão está no seu limite, é hora de apagar o fogo. Nas crises de depressão, em emergências, a intervenção de um profissional de saúde é essencial. 

O aforismo de Hipócrates nos ensina: “sedare dolorem opus divinum est”, ou seja, aliviar a dor é uma obra divina. Do mesmo jeito que após o incêndio precisamos rever toda a fiação elétrica, após um surto depressivo precisamos rever nosso comportamento, nossas atitudes, nosso estilo de vida que está comprometendo nossa saúde mental. 

O sintoma da depressão não é apenas uma manifestação de uma disfunção orgânica, mas também pode ser uma expressão de uma disfunção relacional e existencial. 

Tudo está interconectado e somente pelo esforço de ampliar nossa consciência conseguimos superá-lo. Nesse sentido, nossas dores, nossas ideias de morte, podem ser entendidas como um “grito de alerta”. O corpo está pedindo para revermos nossos comportamentos, crenças e valores, a fim de que possamos ter uma vida mais independente e saudável. 

Esta leitura não é contrária aos avanços científicos e aos avanços da biomedicina, tão necessários, mas sim uma complementação. Articular essas duas leituras de forma complementar, não excludente, é salutar para todos que cuidam da saúde e valorizam a vida humana. 

Foto: Natinho Rodrigues/SVM

Tendo essa noção, como psiquiatra e psicoterapeuta, tenho como objetivo sensibilizar o paciente para procurar fazer uma terapia que o permita compreender as mensagens inconscientes que o levaram a produzir o "curto-circuito psíquico" que resultou num impulso destrutivo de sua própria existência. 

Quando um paciente me fala que está tendo ideias de morte, muitos inclusive dizem ouvir vozes atribuídas a espíritos maus, o incitando a se matar, inicialmente, eu procuro medicá-lo para protegê-lo destes impulsos de morte e início uma reflexão com ele dizendo: seu cérebro não está possuído por nenhum espírito do mal e nem está doente, ele está te alertando que tem algo que precisa morrer, ser eliminado de sua vida. 

O objetivo central do processo terapêutico é identificar o que deve ser eliminado ou modificado. Numa metáfora, o que atrapalha a vida do cão é a pulga. Mas para matar a pulga, não precisamos matar o cachorro. 

Dessa maneira, o tratamento psiquiátrico não se limita a eliminar as ideias suicidas com o uso de psicotrópicos, a matar a pulga, mas sim a decifrar essas mensagens inconscientes e fazer as mudanças necessárias em sua vida ou em seu ambiente familiar, ou de trabalho. 

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Eliminar um sintoma sem compreender o processo que o causou é uma falta de responsabilidade, uma falta de cuidado e um maltrato ao paciente.

Daí a importância da participação e do apoio da família e da comunidade no processo de tratamento. Muitas vezes, o paciente é o porta-voz de uma disfunção familiar. Devido à sua sensibilidade, ele somatiza. Ele é a ponta visível de um processo invisível. Enquanto não decifrar essas mensagens e fazer as mudanças necessárias, ela voltará e você terá recaídas. “Decifra-me ou devoro-te”. Isto não se resolve sozinho, precisamos de ajuda.  

Inúmeras são as terapias que podem auxiliar a nos tornarmos terapeutas de nós mesmos, decifradores das mensagens inconscientes de nossos sintomas. 

Além das psicoterapias tradicionais, realizadas pelos psicólogos e psicoterapeutas, dispomos de outras práticas integrativas de cuidados, como a terapia comunitária integrativa, biodança, ioga, massagem de bem-estar, dentre outras práticas. Daí a necessidade de ampliarmos os espaços de cuidado nas comunidades, usando todos os recursos culturais disponíveis. Insisto, eles não substituem o tratamento médico e sim complementam. Não podemos nos esquecer de que, em situações difíceis que enfrentamos, receber um abraço, uma massagem, uma oração, um ouvido atento são fundamentais. 

A lei que regula o universo é a lei do amor. Cada um de nós tem em si esta força poderosa que transforma a si, os outros e o planeta. Nada é mais terapêutico do que um gesto de amor, afeto e cuidado. Para isso, não precisamos de cursos, diplomas e não temos despesas adicionais. 

Durante todo o mês de setembro amarelo, o projeto 4 varas, na barra do Ceará, com o apoio do governo do estado, terá uma ação de cuidados para toda a comunidade incluindo além de terapias, orientação jurídica, emissão de documentos, atendimento psicossocial, ajuda psicológica, oficinas da CEART, oficinas de prevenção à violência entre outras atividades. É um momento de cuidar, de prevenir e melhorar a saúde mental, física e cidadã do Fortalezense.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.