É comum ver nas redes sociais jovens se autoutilizando e buscando apoio em CAPS e centros de saúde. Em outras palavras, utilizam giletes para cortar o próprio corpo. A autoflagelação de jovens é um fenômeno global que está se tornando cada vez mais frequente em nossa sociedade. Não se trata de um gesto de loucura e sim de um ato de desespero, de uma dor profunda na alma que não é possível expressar em palavras para poder pensar e sair deste lugar de sofrimento insuportável.
Apenas quando tomamos consciência dessas mensagens do nosso não consciente é que podemos nos libertar. É uma desordem emocional que não pode ser ignorada e requer cuidados imediatos. Não se pode esperar que o tempo possa resolver. Perder sangue significa perder vida.
A psiquiatria tem familiaridade com esse distúrbio, conhecido como autoflagelação. Esses atos compulsivos e repetidos de automutilação não são apenas um problema individual, mas sim um reflexo de vários fatores psicológicos, emocionais e sociais. O que está por trás dessa automutilação? O que essa automutilação revela do indivíduo, de seu ambiente e qual a mensagem que ela quer transmitir?
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Vejamos alguns elementos que nos ajudam a compreender essa tragédia que atinge a juventude. Para entender um fenômeno, precisamos considerar o ambiente onde ele acontece. As pessoas sensíveis às condições do ambiente são as mais afetadas. Eles fazem a autoflagelação em momentos de solidão, angústia, dor interior e tensão interna, a qual ainda não sabem nomear nem lidar.
Esse gesto revela muito do ambiente familiar marcado por violências, abusos, negligencias, abandono ou superproteção. Nos conta também o que acontece no ambiente escolar, como bullying, discriminação e dificuldades de aprendizagem e socialização. Sabemos que o corte na pele produz alívio momentâneo, diminui a tensão interior, raiva e culpa. É possível suportar a dor física, mas não, a dor psíquica.
Sabemos que o nosso corpo revela o que se passa em nossa mente. É no corpo que os conflitos inconscientes se manifestam. O sintoma é a parte visível de um processo invisível, indicando que há algo errado em minha vida, que precisa ser revisto, modificado. A parte do corpo atingida nos fornece pistas para decifrar essas mensagens.
A pele é um local de ressonância do que vem de dentro de mim, do que o meu inconsciente está tentando me comunicar para me libertar. A pele é, por excelência, um canal de comunicação. O que não consigo dizer com palavras que minha pele ensanguentada está querendo me dizer?
A caneta vira gilete e o sangue tinta que escreve na pele, um pedido de ajuda. Cortar minha pele é uma forma de transmitir mensagens do meu inconsciente, direcionadas a alguém.
Quais relacionamentos devo cortar para me sentir livre? A pele é, simbolicamente, uma barreira, uma proteção contra o que está dentro de nós e fora de nós. Por ser porosa, ela nos permite respirar, regular a temperatura, deixar escapar as impurezas pelo suor, trocar energia e se renovar. Ela é uma barreira, uma porta que regula o eu dos outros, o dar e o receber e limita o dentro do fora.
Mas, quando me sinto asfixiado, sufocado, preso a um relacionamento ou a uma experiência dolorosa, cortar minha pele, não seria uma forma inconsciente de expressar um desejo profundo de romper com as amarras dessa prisão e estabelecer um relacionamento saudável e libertador?
Quando o cérebro pede para a pessoa cortar, está comunicando que algo inconsciente, invisível em nossos relacionamentos, que nos oprimiu, e continua oprimindo precisa ser cortado e eliminado. Cortar a pele é a expressão de um desejo inconsciente de modificar minha relação com alguém, e/ou com o mundo exterior. Seria jogar fora o sangue sujo de culpas e memórias negativas que estão intoxicando minha existência. De quem estou precisando me afastar?
Momentaneamente, a lâmina que corta a pele, alivia a dor emocional e se torna um refúgio para o indivíduo. O que precisa ser eliminado, cortado, separado entre mim e alguém de meu relacionamento próximo? Que barreiras estão me aprisionando e impedindo meu crescimento e minha independência, ser dono de minha própria vida?
Que relacionamentos preciso cortar para poder respirar livremente? Para responder a essas questões, é necessário a ajuda terapêutica, a compreensão e o apoio da família e dos amigos mais próximos. Há uma ambiguidade clara entre o desejo de se separar e se libertar e o medo da solidão e do abandono.
Ao mesmo tempo, em que escondo de meus familiares e amigos próximos, quero que vejam a minha dor quando publico fotos nas redes sociais. Seria o Eu-Pele gritando para toda a sociedade: eu existo, me ouçam, me olhem e me respeitem?
Seria uma forma de dar visibilidade a uma dor escondida que não pode ser expressa com palavras? Enfim, são sintomas de um desconforto interior, de uma dor psíquica que, se não for levada a sério, pode se agravar de forma dramática. Esses cortes feitos no silêncio são para ser vistos.
Quem eu queria que visse minha dor, minha impotência e me desse um colo, para me sentir protegida, acariciada e amada? Foi o olhar, o cuidado que não tive de minha mãe/pai quando eu era um bebê? Seria esse passado de desamor e descuido que preciso cortar de minha memória e renascer para a vida adulta?
Para existir, é essencial que eu seja visto, acolhido e aceito como sou. Compreender que a autolesão é uma mensagem direcionada a alguém que tem relevância e que preciso do olhar dela para avançar na vida.
Já dizia Freud que a dor fala de uma ausência do outro. Se vejo neste gesto apenas uma doença, uma fragilidade individual, minha tendência é esperar uma solução dos profissionais de saúde, cruzar os braços e ficar passivo.
É verdade que o tratamento desse distúrbio requer assistência de um especialista, mas também é necessário que tenhamos compreensão para participar, influenciar e contribuir com o trabalho terapêutico. Daí a importância da presença da família, amigos e da escola.
Neste setembro amarelo, a maior campanha anti estigma do mundo! Seu lema é “Se precisar, peça ajuda!”.
O projeto 4 Varas está realizando diversas ações abertas à comunidade. Uma iniciativa que reúne esforços de pessoas, de instituições e comunidades para oferecer apoio emocional às famílias que convivem com a automutilação.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.