Muito antes da pandemia, o vírus da ignorância já atacava a cultura brasileira

Historicamente, trabalhadores da arte precisam lidar com a doença do atraso

Diferentes setores da economia brasileira seguem afetados pela pandemia do novo coronavírus. Destes, um em especial, concentra incerto e drástico cenário. Invisível a certa parcela da população e alvo do escárnio de determinados gestores públicos, a cultura também regurgita as imediatas consequências do vírus devastador. 

Dentre as primeiras medidas na tentativa de aplacar o avanço da infecção, estados e municípios determinaram o fechamento de prédios voltados à fruição da arte. Sejam públicos ou privados, equipamentos como teatros, museus, cinemas e casas de show cerraram as portas. Concertos musicais, espetáculos, peças, entre outras apresentações artísticas foram prontamente canceladas ou tiveram datas adiadas.

Um fato é certo. O "pum do palhaço", definição infantiloide proferida pela secretaria especial de cultura, Regina Duarte (ainda não consigo deixar de rir ao citar o nome desta criatura), é responsável por colocar comida na mesa de muito brasileiro. Sem cultura, falamos de bufunfa, cifras e dinheiro deixando de circular pelo País.

Porém, peço a urgência de uma pausa reflexiva

Se você imagina a atual crise batendo nos costados de um magnata do nível de um Roberto Carlos, errou. Na na ni na não. Todavia, continuamos citando medalhões. Quando um sujeito como o Wesley Safadão fica noiado com o momento e cancela apresentações, toda uma equipe deixa de levar o pão para casa.

São eletricistas, técnicos de palco, roadies (turma que pega pesado na condução do show), seguranças, motoristas, turma de figurino, luz, som... Toda uma rede de trabalhadores fica no prejuízo e passa a cortar um velho dobrado. É um exemplo expressivo. Nem contabilizamos aqueles que dependem do apurado imediato, caso de quem vive da lona do circo. 

Desde a última sexta-feira (13) acompanhamos o avanço corrosivo do vírus na economia cultural cearense. Produtores, atrizes, pesquisadores, entre outros profissionais relataram o mais puro sentimento de medo. Todas as entrevistas, sem exceção, entregaram vozes comprometidas em unir forças pelo bem comum. "Se é para fechar as portas, fechamos", assuntei. 

Ouvi e apreciei cada relato. Percebi um certo nó na garganta. A preocupação mais urgente iluminava itens de primeira necessidade. Em meio aos cancelamentos, qual a saída para manter as contas em dia? É comer, pagar aluguel. Cuidar dos filhos. Como todo operário, carecem de dignidade.   

Na mesma intensidade vi articulações pontuais, caso do Festival Quarentena. Por sua vez, o Fórum Cearense de Teatro e o movimento #TodosPelaCulturaCE entregaram cartas aos respectivos órgãos que lidam com a cultura no Estado. São documentos dotados de propostas e ideias. Diálogo e coletividade. Sim, diante da crise, é possível levar cultura para a população. Seja quem tem o privilégio da quarentena ou não. 

Criado e atuante nos palcos locais desde o ano 2000, o Grupo Bagaceira de Teatro tinha o espetáculo "Interior" marcado para o Cineteatro São Luiz nos dias 24 e 25 de março. O depoimento público de um dos integrantes, via Facebook, foi devastador. O relato do ator e produtor Rogério Mesquita descortinou que aquilo que já ia ser difícil, atingiu o nível do desterro. 

"As reservas do grupo, economizadas na ponta da lápis , finalmente chegaram ao fim. Tínhamos uma série de apresentações para criar um novo respiro financeiro. O coronavírus chegou e escancarou a realidade: nós artistas, trabalhadores informais, estamos completamente desamparados", dividiu.

O desabafo arquitetou um cenário bem mais horripilante

De posse da provocação guiada pelo ator, algumas constatações teimam em incomodar. É viável para o artista prosseguir diante de uma sociedade que o trata como um pária? Historicamente, a cultura brasileira sempre respirou por aparelhos. Foi continuamente tratada e esquecida numa maca de corredor fria e com nacos de sangue nas paredes.

Sofre, muito antes desta pandemia, de doença tão mortal e covarde quanto. É o vírus da ignorância. As principais reações dos infectados incluem espumar pela boca e tentar morder quem aprecia o saber e a arte. Nos último anos, a peste do atraso guarda inimigos entre artistas, cientistas e jornalistas. 

É possível angariar algum tipo de saldo positivo nesta calamidade? Difícil precisar. As nefastas consequências ainda são pouco perceptíveis. De certo, até agora, o coronavírus enfiou na goela de boçais detratores a relevância da cultura enquanto mercado, trabalho e indústria.

São trabalhadores comprometidos com a educação. Partilham o conhecimento. Filmes, shows, peças, poesias, exposições e quaisquer outras expressões artísticas são ferramentas para existências menos cretinas. O coronavírus vai passar. A arte, mais uma vez, vai sobreviver. Mas, a qual preço?

 

 

 

 

 

 



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