Copa do Mundo deixa legado de especulação imobiliária e alta de preços em imóveis em Fortaleza
Novos empreendimentos surgem na região em virtude da remodelação do estádio e das obras de infraestrutura; especulação é questionada por especialistas
Os investimentos de mais de R$ 1,6 bilhão em mobilidade em Fortaleza efetuados para a Copa do Mundo de 2014 no Brasil trouxeram mudanças significativas na condição urbanística da cidade, sobretudo nos arredores da Arena Castelão, equipamento construído e utilizado para o evento. Além disso, também é possível observar as alterações na dinâmica imobiliária, que colocam os bairros vizinhos ao estádio em evidência.
Há 15 anos, em maio de 2009, Fortaleza foi escolhida como uma das sedes da Copa de 2014. Desde então, uma série de mudanças mudou a dinâmica de cinco bairros majoritariamente: Barroso, Boa Vista (antigo Mata Galinha), Cajazeiras, Dias Macedo e Passaré, além do próprio Castelão.
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Antes, os terrenos imobiliários e os imóveis nas vizinhanças do Castelão eram marcados por "vazios urbanos e espaços verdes", definidos por empresas do setor da construção civil como glebas, como explica Rodolfo Damasceno, professor do Instituto Federal do Ceará (IFCE) em Tabuleiro do Norte.
"Quando a cidade foi posta como subsede da Copa do Mundo, esse eixo imobiliário começou a ir na direção do Castelão. É o que a gente chama de pêndulo imobiliário. Tinha esse eixo de valorização do mercado imobiliário para essa área da cidade, que foi encontrando na direção ali da Arena Castelão novas áreas para investimentos", define Damasceno em entrevista para o Diário do Nordeste.
Fomos percebendo uma transição gradual de produtos imobiliários, que eram mais casas, para apartamentos. Os preços do metro quadrado (m²) das casas eram maiores, mas gradativamente, os condomínios de apartamentos foram aparecendo. As empresas imobiliárias queriam aproveitar os terrenos e ir construindo mais apartamentos em um espaço que elas pudessem ter mais lucro. No período que antecedeu a Copa, a gente percebe o início de verticalização daquela área.
Como eram os preços?
Um dos principais indicadores que medem o valor de venda residencial no País, o Índice FipeZap+, traz um panorama mensal desde janeiro de 2011 sobre os empreendimentos comercializados em Fortaleza.
Em maio de 2011, dois anos depois da escolha da capital como sede e quando as obras já eram tocadas, o preço médio de venda residencial na capital cearense era de R$ 3.851/m². Na época, os empreendimentos imobiliários já passavam por uma alta valorização, chegando a ficar 25,6% mais caros em comparação com o início de 2010.
"Não havia tantos prédios e agora a gente consegue verificar alguns prédios surgindo, sobretudo ali aqueles próximos já das obras de mobilidade urbana", considera Rodolfo Damasceno sobre a região.
Em sua tese de mestrado, o pesquisador traz um panorama sobre os preços nos cinco bairros citados na pesquisa. Todos passaram por um processo acentuado de valorização imobiliária, contando inclusive com lançamentos.
Atualmente, os preços em Fortaleza mostram uma valorização crescente em toda a cidade. Em janeiro de 2011, o valor médio da compra residencial era de R$ 3.581/m². Já no balanço mais recente do Índice FipeZap+, de abril de 2024, as cifras do metro quadrado na capital cearense estavam em R$ 7.374, variação de 106%.
Que motivos levaram ao aumento da especulação imobiliária no Castelão?
Na ocasião, foram prometidas obras de mobilidade nos arredores da Arena Castelão, como os corredores de ônibus (BRTs) das avenidas Alberto Craveiro, Dedé Brasil (atual Silas Munguba) e Paulino Rocha. As três obras, que custariam R$ 149 milhões (R$ 65 milhões em investimentos federais e R$ 84 milhões, locais), não saíram do papel. No lugar dessas intervenções, foram priorizadas outras, concluídas na semana de estreia do Mundial, em junho de 2014:
- Reforma e duplicação de toda a avenida Alberto Craveiro, com instalação de faixa exclusiva para ônibus;
- Requalificação de toda a via e duplicação da avenida Paulino Rocha (trecho em frente à Arena Castelão);
- Requalificação viária e duplicação da avenida Dedé Brasil (trecho entre o Banco do Nordeste e a Arena Castelão);
- Requalificação viária de toda a avenida Juscelino Kubitschek;
- Rotatória e túnel no cruzamento das avenidas Alberto Craveiro, Juscelino Kubitschek, Dedé Brasil e Paulino Rocha.
"Houve esse beneficiamento dos especuladores que tinham terreno naquela região e vislumbraram a oportunidade de ter os terrenos e os produtos imobiliários valorizados. A gente tem muitos condomínios de apartamentos surgindo nas proximidades aparecendo, sempre enfocando inclusive no seu marketing a proximidade com o Castelão", recorda Rodolfo Damasceno.
Ainda que sejam observados empreendimentos com infraestrutura precária a poucos metros da Arena Castelão, inclusive com falta de saneamento e pavimentação, é inegável a disparada de preços nos arredores do estádio, como destaca Damasceno, que também é pesquisador do Observatório das Metrópoles.
Em entrevista ao Diário do Nordeste, a professora do departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Clélia Lustosa, frisa que a especulação imobiliária observada na região dos arredores da arena fez inclusive com que pessoas que moravam na região vendessem os próprios imóveis
"A gente passava lá, fazia trabalho de campo e ficava impressionado com a quantidade de placas de pessoas vendendo suas casas, como construtoras fizeram várias casas, em geral de classe média e média baixa. É uma classe média consumidora que precisa dessa infraestrutura de serviço", assinala a professora, que coordena o núcleo Fortaleza da rede de pesquisa do Observatório das Metrópoles.
'Coroa' imobiliária
Rodolfo Damasceno também enfatiza o que chama de "coroa imobiliária", surgido na tese de doutorado da arquiteta e urbanista Beatriz Rufino. Trata-se de um espaço de expansão de novos empreendimentos, comerciais e residenciais, que prioriza o segmento econômico (faixa de preço com imóveis de até R$ 350 mil).
Na chamada coroa imobiliária de Fortaleza, ela fica ao sul do mapa da cidade em relação às áreas de grande valorização (que vão da Parquelândia até a Praia do Futuro, descendo em direção ao Edson Queiroz) e contempla a chamada região central, do ponto de vista geográfico.
Isso inclui bairros como Jóquei Clube, Parangaba, Messejana e os que ficam nos arredores da Arena Castelão, tais como Barroso, Boa Vista e Passaré. Segundo Rodolfo Damasceno, privilegiou-se nesses locais a construção de empreendimentos de classe média.
No infográfico, estão concentradas, no círculo vermelho, as chamadas "áreas nobres" de Fortaleza. Os principais lançamentos imobiliários, definidos pelo pesquisador como aqueles de maior valor agregado, ficam nessas regiões. Em verde, está a coroa imobiliária, enquanto que em azul estão os novos eixos de expansão, com destaque para a Caucaia e o Eusébio.
"Esse direcionamento ganhou mais força. Ao longo da pesquisa, fomos verificando muitos produtos imobiliários já buscando o simbolismo da Copa do Mundo. Como é um espaço também de muitas áreas ainda por explorar, com muito verde, alguns produtos imobiliários também se vendiam como condomínio-parque, condomínio-jardim, já trazendo as benesses de morar numa área de forte expansão e crescimento", frisa o pesquisador.
Para ele, fica claro que as obras de infraestrutura criadas na região para a Copa do Mundo foram essenciais, inclusive aquelas que não necessariamente passam tão próximo da Arena Castelão, como o VLT Parangaba-Mucuripe (também denominado como Linha Nordeste do Metrofor).
"Há o movimento de criar uma grande infraestrutura de rodagem, de alargamento e adaptação das vias para esse novo fluxo que ia chegar na região. As linhas para VLT vão ali sendo tracejadas e, nesse ínterim, a gente vai percebendo que o mercado imobiliário vai se reconfigurando nas proximidades onde tem essas obras de mobilidade", avalia.
Mudança gradual do público morador
Ao contrário do que se desenha, a valorização imobiliária da região não foi somente benéfica para os moradores dos cinco bairros. Rodolfo Damasceno defende os arredores do Castelão, em virtude das melhorias realizadas para a Copa do Mundo, passou por um processo conhecido como gentrificação, que na prática valoriza bens e serviços ofertados em uma determinada localidade.
"A gente percebe, pelos produtos que foram ofertados, que havia ali o objetivo de atingir pessoas com mais poder aquisitivo, que estavam buscando já sair de áreas saturadas de Fortaleza, muito mais caras e buscar áreas que tinham ali uma condição interessante para elas investirem o seu dinheiro, comprar um imóvel e também ter todas as benesses que o urbano traz, né, porque não bastaria ser só um condomínio", reflete o pesquisador.
Em contrapartida, onde se davam esses projetos de requalificação para a Copa, vinha acompanhado de um processo de remoção e que também vinha acompanhado ali do mercado imobiliário atento àquelas áreas que ficariam livres para você poder ter uma construção maior de outros empreendimentos, o que a gente chama de gentrificação ou expulsão branda. Vai trocando o perfil socioeconômico de uma região à medida que essas obras foram sendo implantadas.
Essa situação ocorre, dentre outros fatores, pelo forte adensamento populacional de Fortaleza em áreas nobres, o que inclui locais como Aldeota, Meireles e Dionísio Torres. Conforme o especialista, as pessoas, que já buscavam deixar o congestionado fluxo de locais mais centrais, desceram em direção ao Castelão.
"O Castelão foi vendido como uma arena multiuso, o que gera urbanidade agregada aos produtos imobiliários. Os corretores falavam que era uma área que estava se desenvolvendo com investimentos e outros equipamentos iriam surgir. Eles tinham esse objetivo de trazer esse público com o maior poder aquisitivo para a região", aponta.
Expansão imobiliária firme
As mudanças no entorno da arena trouxeram ainda novos empreendimentos, fato consumado pelo pesquisador e por Paulo Angelim, corretor especialista em mercado imobiliário e colunista do Diário do Nordeste.
Em entrevista para a reportagem, o corretor analisa que houve na região um crescimento dos depósitos de materiais de construção, presentes principalmente ao longo das avenidas Silas Munguba e Alberto Craveiro.
Depósito de material de construção é um dos maiores indicadores de desenvolvimento do mercado imobiliário, não só da construção, mas também reforma. Quando você tem a ocupação de determinadas áreas da cidade com equipamentos que a gente chama de super-econômicos, vê a chegada rápida desses depósitos para suprir as pequenas reformas e intervenções.
Paulo Angelim considera que a avenida Silas Munguba, que interliga a Parangaba à Messejana por meio da sua continuação, a avenida Paulino Rocha, passou por um processo incomum de ocupação nos últimos 15 anos em virtude da Copa do Mundo, mudanças perceptíveis sobretudo na área do bairro Passaré.
"O que facilitou as coisas para o Passaré foi o fato de que essa é uma via de passagem onde o comércio pode instalar mesmo sem ter essa geração de demanda das habitações. O comércio praticamente chegou antes das habitações, ou junto, o que não é comum. O que por um lado foi ruim, que a via fica sobrecarregada, por outro proporcionou a dinamização do comércio, que acabou atraindo essas unidades habitacionais", analisa.
Novos estabelecimentos
Ao longo das quatro avenidas que cortam os cinco bairros descritos pelo livro, fica evidente a presença cada vez maior de comércios, principalmente do tipo centro de compras aberto, que também recebe o nome de strip mall.
Na avenida Alberto Craveiro, está próximo de ser inaugurado o Pátio Castelão, strip mall próximo à arena. O empreendimento recebeu investimento de R$ 35 milhões e deverá contar, dentre outras lojas, com um Mercadão São Luiz, Academia Gaviões 24 horas e uma Farmácia Pague Menos.
O pesquisador Rodolfo Damasceno acredita que o novo estabelecimento contempla o pêndulo imobiliário, ao atrair investimentos para uma região que, mesmo com um desenvolvimento maior nos últimos anos, ainda conta com muito espaço para crescimento de imóveis residenciais e comerciais.
Como a gente chega agora com a população que tem mais poder aquisitivo, essa população vai querer usufruir de benesses que não tem naquela área, então shoppings tendem a surgir. Fortaleza tem muito disso, de um crescimento puxado por shoppings em determinadas áreas da cidade. Acredito que aquela região ainda tem algo a oferecer à medida que também pode se intensificar a questão de remoções de populações que lá já moram há um tempo.
De acordo com Paulo Angelim, a inauguração desse shopping deve contribuir ainda para acelerar a oferta habitacional, principalmente de apartamentos, mesmo que ainda haja alguns problemas relativos ao tamanho dos lotes disponíveis.
"Depois da chegada desse mall, o mercado imobiliário vai se mobilizar ainda mais. Ele só não se dinamiza mais naquela região porque é uma área de pequenos lotes, de casas muito pequenas. Para você juntar e conseguir formar uma área que consiga fazer verticalmente, é muito complicado", argumenta.
Qual o legado imobiliário em Fortaleza da Copa do Mundo?
Embora as mudanças sejam visíveis dentro da Arena Castelão e nas vizinhanças, Paulo Angelim acredita que o crescimento observado na região não foi muito diferente do que está destacado na coroa imobiliária, e as transformações não tiveram somente a Copa do Mundo como uma das principais contribuintes para o desenvolvimento.
"Chegaram alguns empreendimentos privados, e isso trouxe implicações principalmente de preço, mas não muito diferente de outros lugares da cidade, e estou falando de regiões periféricas. Vimos um crescimento espetacular na Parangaba, Jóquei, Presidente Kennedy também, mas por outros indutores, geralmente equipamentos privados, como shoppings", afirma o especialista.
Como analista em mercado imobiliário, reconheço a mudança daquela região, mas várias outras também tiveram. Não reputo que a Copa foi determinante para que a região do Castelão ganhasse uma nova atmosfera. Ajudou muito, mas esperava realmente muito mais.
"Do ponto de vista da gestão pública, houve algumas coisas que não deveriam ter acontecido, mas olhando para a área do mercado imobiliário, o legado é positivo, por isso que me empolguei com a vinda da Copa do Mundo Feminina em 2027 porque vai trazer dinâmicas econômica e urbana e vai trazer induções, e espero que venham novas intervenções e a gente justifique as que foram feitas", completa Paulo Angelim.
Patriolino Dias, presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Ceará (Sinduscon-CE), avalia como positiva a Copa do Mundo para o entorno do Castelão, e acredita que o local deve receber ainda mais empreendimentos verticais.
"Ficou com uma infraestrutura espetacular, inclusive com o entorno, deu uma segurança, e atraiu aí com esses investimentos, infraestrutura, também. Vemos vários lançamentos no entorno, e devemos ter cada vez mais, inclusive com novos empreendimentos devendo ser lançados em breve", projeta.
Diferente dos especialistas em mercado imobiliário, Rodolfo Damasceno critica as mudanças na legislação urbanística de Fortaleza. O pesquisador do Observatório das Metrópoles chama de "seletivo" o planejamento urbano da capital cearense, sobretudo por priorizar situações pontuais, como o próprio Mundial.
"Evidenciou mais a disparidade socioeconômica da cidade, uma vez que o planejamento urbano de Fortaleza é posto em prática só quando há situações de interesse de grupos de maior poder aquisitivo. Quando se fala, por exemplo, do plano urbano da cidade para habitação de interesse social, não é levado em consideração. Fortaleza tem planejamento, mas que não é posto em prática", dispara.
Nesta sexta-feira (14), a série de reportagens sobre o Legado da Copa chega ao fim projetando a Copa do Mundo Feminina de 2027, que será realizada no Brasil e terá a maior parte da infraestrutura utilizada - incluindo os estádios - a partir das obras feitas para o Mundial de 2014. Fortaleza, com a Arena Castelão, será uma das subsedes.